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Maria Werneck de CastroDona Maria Werneck de Castro fez a história da ilustração botânica brasileira na segunda metade de nosso século. O reconhecimento de seu trabalho se deve, principalmente, ao rigor com que ela reproduzia os detalhes da espécie retratada e à qualidade técnica e artística destes desenhos fazendo com que eles pudessem (e possam) serem usados para se determinar as espécies neles retratadas. Só a capacidade criativa da artista aliada ao conhecimento científico dos botânicos, com quem ou para quem trabalhou, poderia resultar num trabalho tão perfeito tanto do ponto de vista artístico quanto científico.

Ela colocou, gratuitamente, sua arte à serviço da ciência. Tudo o que ela ilustrou, foi com a preocupação de obter o máximo de precisão, o máximo de fidelidade possível. Nenhum outro trabalho atingiu tal riqueza de detalhes e esta é a sua grande diferença. Sua personalidade, sua paixão pelo que fazia, sua disponibilidade de transmitir seus conhecimentos influenciaram toda uma nova geração de ilustradores brasileiros que se consideram seus seguidores.

Foram 30 anos de ilustração botânica (pintou até os 85 anos) sempre disposta a orientar quem lhe procurasse. Todos que falam dela ressaltam a perfeição técnica do seu trabalho, mas colocam também em evidência sua maneira de ser, o jeito com que conduziu sua própria vida, lançando-se de corpo e alma em tudo que fazia, sua personalidade, sua capacidade de despertar emoção, a força que parece brotar de seu interior, extravasar no contato com as pessoas e cristalizar nas suas aquarelas fazendo com que as espécies nelas reproduzidas parecessem elementos vivos ressaltando do papel.

Participou de exposições nos Estados Unidos (Washington e Pensilvânia), no Japão, na África do Sul e na Dinamarca e também no Brasil. Possui trabalhos nos acervos da The Rachel McMasters Miller Hunt Labrary (Pensilvânia) e Museu Botânico de Copenhagen. Apesar do grande número de exposições e do reconhecimento que seu trabalho obtêm dos botânicos e ilustradores aqui e no mundo todo, ela permanece desconhecida para o grande público, inclusive orquidófilos. E isto se deve a dois fatores: em primeiro lugar, dona Maria Werneck é de uma modéstia extraordinária, não admite ser chamada de professora, nem mesmo por aqueles a quem ela influenciou diretamente. Em segundo lugar, ela julga que seu trabalho, assim como o de todo ilustrador botânico, precisa ser reconhecido pelo conteúdo de informações científicas que ele consegue transmitir, devendo, desta maneira, ficar à disposição do maior número possível de estudiosos e não na parede de alguma residência. O objetivo primordial é a documentação científica. Eis a razão porque ela doou o material, que ainda estava em sua posse, à Biblioteca Nacional.

Hoje, aos 93 anos, com uma lucidez e capacidade de raciocínio inigualáveis além de sua capacidade crítica aguçada, conta-nos um pouco de sua vida no Planalto Central e no Rio de Janeiro e nos fala um pouco de suas viagens ao redor do mundo.




Dona Maria, como foi que a senhora se interessou pelo desenho botânico?

Eu era funcionária da Caixa no Rio e, por ocasião da construção de Brasília, foi aberta uma filial e o gerente me convidou para ir para lá pois ninguém queria ir. Ele sabia que eu gostava de fazer qualquer coisa assim de diferente, então ele me convidou e eu fui.
Eu fiquei deslumbrada. No princípio eu tinha que levar uma vida burocrática, que era uma vida duríssima, a falta de conforto era total, total. Não sei como, num dia, eu conheci Ezequias Heringer, que era botânico e que trabalhava, se não me engano, na Serra do Caparaó. Eu estava com papel na mão e tinha uma orquídea desenhada. Ele viu e se interessou. Fiquei sabendo que ele era botânico e funcionário do Ministério da Agricultura, lá em Brasília, e nós tivemos uma camaradagem muito grande. Ele se interessava por orquídeas e, em especial, pelo Cyrtopodium que era a sua paixão.


Quando senhora foi para a Brasília? Como foi sua estadia lá?

Em 12 de janeiro de 1960. Só tinha um buraco, fios de luz, de gerador. A vida era dificílima. Um dia eu cheguei em casa e não tinha comida porque a empregada não tinha encontrado nada. Tinham comprado tudo, ela não achou nada para fazer, então ela me deu uma lata de salsicha com arroz. Eu não estava acostumada a comer estas coisas de lata, disse a ela que eu dar um jeito na vida.
Aí eu comprei um jipe. Ficou todo mundo horrorizado:
"-Não é possível uma funcionária da Caixa Econômica andar de jipe..."
Mas acontece que eu queria o jipe não só para ir do acampamento onde eu morava até a Novacap, onde havia as reuniões das casas do governo, da própria NOVACAP que tomava conta da construção de Brasília, eu também queria conhecer o cerrado. Eu nunca tinha ouvido falar em cerrado, se tinha ouvido, não tinha prestado tenção, não sabia o que era. Isto foi em plena floração do cerrado. Eu quase fiquei maluca com as aquelas flores.
Comecei andando de jipe, sozinha, uma coisa completamente doida, que hoje não se faria. Eu só sabia guiar, se acontecesse qualquer coisa... Depois começaram a aparecer pessoas que andavam comigo, que também achavam interessante. Mesmo assim, às vezes, eu ia sozinha mas quase sempre tinha gente que ia comigo. Numa época, isto não tinha dúvida, era Pascoal Carlos Magno que era o Secretário de Cultura. Íamos nós dois. Agora se acontecesse alguma coisa, não sei o que seria pois eu só sabia guiar, não sabia mais nada e Pascoal não sabia nada, nem dirigir ele sabia.
Nós passeávamos muito, vimos muita coisa bonita no estado de Goiás, cidades antigas. Eu quis registrar tudo aquilo. Eu ia para mato e sentava no chão para desenhar.
Quando andava de jipe, nas estradas ainda não asfaltadas, passava um bando de corças, aquelas corças lindas. Indo do plano piloto para a Granja do Torto, que já estava construída para o vice-presidente , para o Jango, a gente via um bando de corças mas também via cobras venenosas.
Aí eu comecei a admirar o cerrado e a conhecer os fazendeiros de perto. Eu ia às fazendas deles e eles me mostravam coisas que eu nunca tinha imaginado ver, tamanduá andando no mato (mas o tamanduá que eu vi.... eu fiquei deslumbrada), bandos de emas, veados. Eu vi um veado lindo, mas isto foi no meio de um incêndio e eu não sei se o fogo queimou o veado ou se ele conseguiu fugir. E eu, por minha vez, em plena loucura, andando de jipe no meio do fogo. Eu estava na estrada mas o fogo passava de um lado por outro. Eu me recolhi numa fazenda, que me acobertou, passei uns dias lá até acabar o incêndio, que era feito de dois em dois anos. Eu ficava indignada e os goianos achavam aquilo natural. Um dia fui convidada a almoçar numa fazenda e comi uma carne deliciosa, eu elogiei e me perguntaram: - "Que carne é esta?" "-Eu não sei, nunca comi, só sei que é deliciosa". Sabe o que era? Mão de tamanduá. É uma carne maravilhosa, mas é proibido matar tamanduá, punido por lei mas o homem mata.
Naquela época todo mundo ficou com febre de querer ter um pedaço de terra e eu comprei um sitiozinho. Acontece que o sítio ficava num lugar onde eram os olhos d'água da bacia do Prata. Eu achei isto assim o máximo da poesia , mas aquela água limpa ficava exposta ao sol para os animais beberem. Eu mandei fazer uma calha para tapar aquela água e os olhos d'água do Rio da Prata ficaram imunes. Os fazendeiros diziam que isto só podia passar mesmo na cabeça de gente do estado do Rio.



Depois da queimada, começaram a aparecer os Cyrtopodiums, uma beleza. Eles e as Vellozias tinham a coragem de suportar os incêndios e o estrago que o homem fazia. O homem não ligava absolutamente para o que era Cyrtopodium, o que eram as Vellozias.


As canelas de ema eram aproveitadas para fazer fogo e um arquiteto descobriu que misturadas ao barro, elas davam uma parede muito resistente para as casas de pau a pique. Eu vi, na Chapada dos Veadeiros, um bosque de canela da ema. A coisa mais linda do mundo e seis anos depois eu passei lá e estava destruído, completamente destruído. Aí, o Dr. Heringer me explicou que, além do homem, a canela de ema tinha os insetos que se aproveitavam dela. O homem não era o único predador da vellozia e ainda havia um terceiro, era um animal que eu não me lembro qual é, que comia as raízes. Eu sei que hoje em dia, não há mais nada deste bosque.
Mas esta época de Paschoal foi muito divertida, nós caçoávamos muito.
Gasolina não tinha. Só tinha nas cidades. No cerrado, você andava quilômetros a fio e não tinha gasolina. As pessoas guardavam gasolina nos bujões ao lado das casas. A gente comprava a gasolina, mas tinha que coar. Eu coava gasolina nos lenços. Ela era cheia de ciscos e se um cisco daquele entrasse no motor, eu estava perdida.
Aquilo era muito agradável. A vida com aquele jipe, era muito agradável. Com ele, eu ia ao Palácio do Planalto, ia a qualquer lugar oficial importante. O pessoal ficava uma fera. "...uma funcionária da Caixa Econômica andando de jipe... ". Eu parava o jipe no meio daqueles carros ricos. Era muito bom.


Dona Maria, quer dizer que a senhora teve uma vida meio aventureira?

Eu tive uma vida muito boa.
Brasília tinha coisas surpreendentes. Primeiro eram aqueles temporais. Não tinha nada, 180º livres e de repente, trovões e a chuva caía. Também quando dava a seca, era um horror. No primeiro inverno que passei lá, uma noite deu 4ºC. Um frio, um vento, uma coisa horrorosa.



Como foi que a senhora viu Brasília na sua chegada, deveria ser terrível ver tudo sendo destruído?

A vegetação toda sendo destruída porque (já estou nas portas da morte, já posso dizer isto) os arquitetos não entendiam bulufas de botânica. Eles botavam abaixo árvores lindas.
Eu vi botar abaixo um pé de pequi todo florido, que eu quase chorei. Pedi, implorei ao tratorista:
"- Por favor, não faça isto..."
"- Faço, faço, mandaram eu botar abaixo, eu boto abaixo. O doutor me mata se eu não cumprir a ordem de botar abaixo".
E ele botou.
Entre as quadras, ao invés dos arquitetos conservarem as árvores de pequi, eles botaram tudo abaixo e plantaram plantas do México, plantas que não são do cerrado, abricó de macaco, tudo que se possa imaginar, menos o que é do cerrado.


Quer dizer, dona Maria, que a senhora considera que eles poderiam perfeitamente ter conservado as árvores do cerrado entre as quadras?

Eles queriam a cidade florida. Ainda que eles não conservassem tudo, que deixassem as árvores do cerrado entre as quadras pois elas também dão flor, mas eles não acreditavam. Não tinham consciência. O arquiteto brasileiro daquele época não tinha a menor idéia do que fosse cerrado, mata atlântica.

A senhora nunca encontrou ninguém desenhando também nestes caminhos que a senhora fazia? Nesta época era mais muito difícil encontrar outros desenhistas?

Nunca, nunca. Só na Universidade.

Como a senhora escolhia o que desenhar, qual era o seu critério?

Olhava a beleza de uma árvore, inteiramente coberta de flores, então desenhava.

E o seu contato com as orquídeas, como foi?

Meu contato com orquídeas foi muito pequeno e muito especial. Eu descobri que orquídea dava no chão. Eu não sabia, para mim orquídea só dava em árvore.
Veio setembro, os Cyrtopodium começaram a brotar e eu fiquei encantada porque a brotação do Cyrtopodium, o crescimento dele, a formação até ele ter a flor mesmo, é uma coisa extraordinária. O doutor Heringer incentivava meu entusiasmo porque, como disse, o Cyrtopodium era a paixão dele e o motivo da ativa correspondência que ele tinha com o Senhor Guido Pabst, que era o especialista em orquídeas.
Bom, por causa disto, um dia o Dr. Heringer recebeu uma carta do orquidófilo Harry Blossfeld perguntando se ele conhecia alguém que pudesse mandar um desenho para a exposição na Pensilvânia (Hunt Botanical Library, Carnegie Mellon University, Pittsburgh, USA) e ele falou comigo.
Eu tinha o papel de desenho mais ordinário do mundo, a tinta, por um acaso, eu tinha levado daqui, era inglesa (as tintas e os pincéis), mas o papel era ordinaríssimo e, além de tudo, pequinininho, de maneira que não era possível desenhar a planta no seu todo, era preciso quebrar. Eu achava aquilo horrível, mas não tinha outro jeito. Os Cyrtopodium eram então dobrados ao meio, eu desenhava ele todo, mas dobrado, o que não deixava de alterar, não? Bom, não se via a planta como ela era, estava sempre dividida.
Estes dois desenhos, Vellozia flavescens e Cyrtopodium paludicolum, o Dr. Heringer mandou para o Sr. Pabst, e eles providenciaram o envio para a exposição na Pensilvânia. De lá, o diretor da Hunt Library me escreveu perguntando se eu gostaria de vendê-los . Eu, naturalmente, fiquei radiante e ao mesmo tempo espantada porque nunca podia dar valor àquele pedaço de papel ordinário pintado.

Quer dizer que na área de botânica, a senhora foi mais ligada ao Pabst e ao Dr. Heringer. A senhora chegou a conhecer Guido Pabst?

Conheci sim. Ele era uma pessoa encantadora. Ele mantinha correspondência comigo, trabalhando como ele trabalhava, ainda tinha tempo de me escrever. Mandei um Cyrtopodium para ele porque eu achava, não sei porque, que tinha aparecido nos estudos de Lund, da Lagoa Santa. Ele me respondeu numa carta que ele também achava, mas que para ter certeza disto era precisava ir ao herbário de Amsterdam (se não me engano) e isto, um botânico brasileiro não iria fazer. Sair daqui para estudar um Cyrtopodium num herbário tão distante. Guido Pabst chegou mesmo a me dar o livro do Hoehne para procurar o Cyrtopodium e eu achei um que me parecia ser um dos que eu tinha desenhado. Mas eu era, eu sou de uma ignorância total em botânica. Da maneira que eu dizia, eu só podia dizer coisas ao Pabst e ao Dr. Heringer e a mais ninguém.



Quando a senhora começou a desenhar, foi no período que morou em Santa Catarina?

Não, lá era desenho de colégio, de grupo escolar.

Onde a senhora nasceu?

Eu sou fluminense de Vassouras, nasci em 1905.

A senhora disse que começou a se interessar por desenho botânico quando mudou para Brasília, em 1960. Quer dizer que este interesse começou aos 55 anos, que tipo de desenho a senhora fazia antes, ?

Aqui no Rio, eu desenhava anatomia patológica, mas deixei completamente para fazer a botânica, coisa que eu nunca tinha imaginado fazer.

E o desenho de anatomia patológica, como surgiu, qual era a função?

Eu tinha uma amiga médica e, como ela sabia que eu gostava de desenhar, um dia ela me disse:
"- Por que você não vai à Santa Casa? Eu levo você lá."
Ela me levou lá e me apresentou ao Raymundo Honório. E eu comecei a fazer os desenhos.
Meu irmão quase morria pois eu carregava as cubas para casa e quando ele ia lá e via um pulmão, ele ficava furioso. Virava as costas e dizia:
"- Esta sua mania..."
Eu assistia as operações. Foi uma vida muito boa, muita rica.


Eu não vejo influência de alguém, a senhora foi traçando sozinha seu caminho.

Não tinha ninguém desenhando comigo, só o Raymundo, meu professor. Ele era um grande desenhista de anatomia patológica, ele fazia os desenhos para os grandes médicos. Ele fazia outros desenhos também, mas não de botânica.
Hoje em dia, tudo é fotografado mas não é a mesma coisa. A textura da peça se perde na fotografia.


Então, em razão de seu trabalho, a senhora só desenhava final de semana. Isto era todo final de semana?

Todo final de semana não, pois eu tinha que passear. Final de semana que Pascoal podia, queria, a gente ia passear.
Ali, em Brasília, eu fiz tudo o que pude, o que podia, mas quase não tinha tempo. Era só sábado e domingo, porque durante a semana eu tinha que trabalhar na Novacap onde eu tinha um emprego burocrático, que não tinha nada a ver com a atividade de desenhista. Havia também a deficiência do papel.
Meu antigo professor de desenho de anatomia patológica, Ryamundo Honório, quando viu o Cyrtopodium desenhado naquele papel, me disse:
"-A senhora conseguiu um milagre. Desenhar uma planta, desta maneira, num papel ordinário".
Naturalmente, meu trabalho foi todo comido pelas traças.


E depois deste período de Brasília?

Depois disto tudo, como eu era funcionária da Caixa, veio minha época de aposentadoria. Me aposentei, fiquei um pouco lá e voltei. Aqui no Rio, fiz mais botânica do que lá no cerrado. Lá, era uma coisa engraçada, fazia e destruía, não dava valor a que aquilo devesse ser conservado.

A senhora não guardou este material que a senhora fez nesta época do cerrado?

Não, não tenho mais nada comigo. Na biblioteca de Pittsburg, Pensilvânia, tem aqueles dois desenhos, tem na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e mais alguma coisa espalhada.