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A história da ilustração botânica no Brasil e o lugar ocupado por dona Maria Werneck de Castro

por Delfina de Araujo

A história da ilustração botânica no Brasil começou praticamente com a vinda de Maurício de Nassau, no século XVII. Era muito comum naquela época, os conquistadores trazerem em suas expedições naturalistas e desenhistas para documentarem a exuberante flora dos trópicos que tanto os atraía. A grande diversidade de espécies e um número menor de indivíduos, em contraposição às regiões temperadas onde o número de espécies é pequeno e o de indivíduos é grande, surpreendia aqueles visitantes. Esta diferença, ainda hoje, provoca a admiração dos cientistas e dos ilustradores que nos visitam, fazendo-os registrar de maneira tão apaixonada o que aqui vêem.

Até o século XIX, praticamente apenas dois estrangeiros, Eckhout e Marcgraff, ambos trazidos por Maurício de Nassau, conseguiram executar algum trabalho deste gênero em nossas terras.

O pintor Albert Eckhout, embora não fosse ilustrador botânico, nos deixou um legado de grandes telas onde pintava os tipos aqui residentes entre representantes de nossa flora e fauna. Nestas telas pode-se perceber, pela capacidade de observação e o rigor da reprodução do artista, o máximo de detalhes dos assuntos abordados.

O cientista Georg Marcgraff, formado em matemática, astronomia e botânica, reproduziu com seus traços rústicos parte de nossa flora.

Devido ao fato dos portugueses impedirem a entrada de qualquer estrangeiro em nossas terras, provavelmente por razões estratégicas, no sentido de esconder das outras nações as riquezas de nosso País, durante muito tempo este tipo de registro ficou quase que restrito a estas duas pessoas.

Esta situação só se modificou quando foi decretada a "Abertura dos Portos Brasileiros às Nações Amigas", depois da vinda da família real para o Brasil, já que esta abertura atingiu, naturalmente, os componentes da classe científica. A partir daí houve uma transformação radical e vários estudiosos ou simplesmente coletores efetuaram expedições pelo interior de nosso país registrando os detalhes de tais incursões.

Com o casamento da Arquiduquesa Leopoldina da Áustria com o Príncipe Pedro d'Alcântara, veio um grande número de estudiosos e desta comitiva fez parte o botânico Von Martius. Ele percorreu vários trechos do país, entre l817 el820, cobrindo quase 7.000 km. Ele publicou o resultado de seu trabalho na coleção "Flora Braziliensis", sendo que os últimos volumes foram publicados após sua morte por Cogniaux.

Auguste de Saint-Hilaire percorreu o país no período de l816 a 1822. Todas as obras de levantamento da flora brasileira foram bastante ilustradas sendo que a obra de Saint Hilaire foi descritiva e elucidativa. Muitas destas ilustrações não trazem identificação do autor.

É preciso também destacar Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), naturalista brasileiro que participou da "Viagem Filosófica à Amazonas", entre 1783 e 1792, cuja obra foi ilustrada por Joaquim José Codina e José Joaquim Freire. Seus trabalhos encontram-se na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Outro brasileiro, Francisco Freire Alemão Cisneiros (1797-1874), médico e professor de Botânica e Zoologia, tendo sido inclusive professor de desenho de Barbosa Rodrigues, deixou aquarelas representando a riqueza da família das orquidáceas.

Barbosa Rodrigues (l842-l909), botânico brasileiro e diretor, por l9 anos, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e Diretor do Museu Botânico do Amazonas, realizou longas viagens com o objetivo de efetuar pesquisas "in loco" e preparar seu próprio material de taxonomia. Descreveu muitas espécies brasileiras sobre as quais executou mais de 1.000 aquarelas, tendo as orquídeas como tema (estas pranchas permaneceram sem serem publicadas por um século e parte delas foi recuperada e publicada em l996). Era um apaixonado pelas orquídeas e pelas palmeiras brasileiras.

Frederico Carlos Hoehne, um dos maiores botânicos que o Brasil já teve, deixou uma extensa obra com mais de 400 trabalhos sobre a flora brasileira e, em particular, sobre as orquídeas. Nestes trabalhos destacam-se a coleção "Flora Brasílica", "Álbum de Orchidáceas Brasileiras" e "Iconografia das Orchidáceas Brasileira"', onde descreveu uma infinidade de espécies. Suas obras são fartamente ilustradas por desenhos seus e de outros ilustradores como: Jm. F. Toledo, Margaret Hoehne, Ruth S Carvalho, G. Münch e M.B. Vecchi. Parte das ilustrações foi feita sob sua orientação e outras eram reproduções de material publicado em obras anteriores e também do acervo do Jardim Botânico.

A história da ilustração botânica em nosso país não parou mais. Ao se debruçar sobre esta história, vê-se nela o resultado da importância do trabalho conjunto do botânico e do ilustrador, tão bem destacada por dona Maria Werneck de Castro ao dizer que "sem o botânico, não há desenho científico, pois só ele pode determinar a veracidade do desenho. É ele quem classifica a planta e faz ver a necessidade deste ou daquele detalhe". O ilustrador, sob a orientação do botânico, consegue focalizar todos os pontos importantes e fazer uma seleção da informação proporcionando ao desenho o rigor científico que permite trazer, ao mesmo tempo, caracteres de significado taxinômico e a estética de uma obra de arte. Alguns conseguem enriquecer sua condição de cientista com o talento criativo de artista como Barbosa Rodrigues, Antonio José Landi (século XVIII), F. C. Hoehne e Graziella Barroso (Século XX).

A capacidade criativa da artista aliada ao conhecimento científico dos botânicos com quem trabalhou fez com que o trabalho de dona Maria Werneck alcançasse tal nível de excelência, tanto do ponto de vista artístico quanto científico. E ela colocou, gratuitamente, esta sua arte a serviço da ciência. Tudo o que ela ilustrou, foi feito com a preocupação de se obter o máximo de precisão, o máximo de fidelidade possível. Em seu trabalho o rigor na reprodução absolutamente fiel dos detalhes da espécie retratada foi mais importante do que a quantidade de plantas reproduzidas. Nenhum outro trabalho teve tal riqueza de detalhes e é isto que a destaca entre os grandes ilustradores. O reconhecimento de seu trabalho pela comunidade botânica científica, tanto nacional quanto internacional, se deve, principalmente, a este rigor e à qualidade técnica e artística destes desenhos, fazendo com que eles possam ser usados para se determinar as espécies neles retratadas.

Apesar de sua modéstia em dizer que entre nós o nome mais notável é o de Margaret Mee, é preciso que se faça uma observação. Não se trata de escolher aqui quem é a melhor, mas de se fazer justiça. Embora sendo menos conhecida do grande público, a qualidade artística de seu trabalho e seu conteúdo científico a colocam, pelo menos, no mesmo patamar da grande ilustradora inglesa.

Pintando e desenhando até os 85 anos de idade, sua personalidade, sua paixão pelo que fazia e sua disponibilidade em transmitir seus conhecimentos influenciou toda uma geração de ilustradores botânicos como Dulce Nascimento, Cristina Miranda, Paulo Ormindo, Vania Aída, Alexandre Justino, entre outros. Eles mesmo vêem em seus trabalhos os resultados desta influência e se declaram como seus alunos ou, pelo menos, como seus seguidores.

Ainda hoje, aos 93 anos, com uma lucidez e capacidade de raciocínio inigualáveis, além de sua capacidade crítica aguçada, não se furta a ajudar a todos aqueles que lhe pedem uma orientação. Todos que dela falam, ressaltam a perfeição técnica do seu trabalho, mas colocam também em evidência sua maneira de ser, o jeito com que conduziu sua própria vida, lançando-se de corpo e alma em tudo que fazia, sua personalidade, sua capacidade de despertar emoção, a força que parece brotar de seu interior, extravasar no contato com as pessoas e cristalizar nas suas aquarelas fazendo com que as espécies nele reproduzidas pareçam elementos vivos ressaltando do papel.

Apesar do grande número de exposições que realizou e do reconhecimento que seu trabalho obtêm de botânicos e ilustradores aqui e no mundo todo, ela permanece desconhecida para o grande público. E isto se deve a dois fatores, em primeiro lugar, dona Maria Werneck é de uma modéstia extraordinária, nem sequer admite ser chamada de professora, mesmo por aqueles a quem ela influenciou diretamente e, em segundo lugar, ela julga que seu trabalho, assim como o de todo ilustrador botânico, precisa ser reconhecido pelo conteúdo de informações científicas que ele consegue transmitir e, por isto mesmo, deve ficar à disposição do maior número possível de estudiosos e não na parede de alguma residência. O objetivo primordial é a documentação científica e não propriamente razões estéticas. Razão pela qual ela doou a coleção de seu material à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro acreditando que, assim, mais pessoas poderão ter acesso a elas.

Dona Maria Werneck de Castro fez a história da ilustração botânica brasileira na segunda metade de nosso século.


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