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Este caso
foi relatado por Heitor Gloeden , em seu livro "A
Jóia da Bruxa" e está sendo reproduzido com a autorização
de seu editor.
Costumeiramente
eu ia Santa Angélica, perto de Alegre, no estado do Espírito
Santo, a fim de coletar, entre outras plantas, a Cattleya warneri.
Meu local de concentração era em casa do velho amigo de
meu pai, Sebastião de Matos Lima, que residia naquela vilazinha.
Era, a meu ver, o maior tirador de orquídeas que meu pai tinha
no Espírito Santo.
Quando se chegava a determinado lugar, logo a notícia se espalhava:
o comprador de parasitas estava na casa do Bastião. Meu pai era
"o alemão" ou "o francês", a mim também chamavam de
"o paulista".
Todos os que faziam as derrubadas, para plantar café ou cereais,
colhiam as plantas e as colocavam em árvores, aguardando nossa
vinda, sabendo que com isso sempre arranjavam alguns cobres. Era só
a agente e chegar todos vinham oferecer suas plantas, algumas boas, outras
todas estragadas por terem sido mal colhidas ou colocadas em lugares impróprios,
ao sol direto em muita sombra.
Os amigos não podem calcular como era difícil colher warneri
das árvores, pois a maioria delas cresce sobre enormes jequitibás,
perobeiras, figueiras e outras árvores de grossura e alturas incalculáveis.
Raramente se encontram em rochedos ou cerrados, mas sempre nas serras
mais altas das tremendas cadeias de montanhas no interior-sul do estado
do Espírito Santo, sem falar ainda do Estado de Minas Gerais. Além
disso, há sempre a dificuldade de transportá-las das matas
para o ponto de estocagem, antes do embarque para São Paulo.
Todas as vezes que eu estava em Santa Angélica, em casa do Bastião,
aparecia um mulatinho, o Dito Getrudes, que se oferecia para trazer quanta
warneri eu precisasse e sempre em prazo curtíssimo. Como
aos outros, a ele também fazíamos uma encomenda de certo
número de warneri. E, numa pontualidade até absurda,
de sistematicamente quatro dias, ele chegava com suas plantas lindas,
bem colhidas, bem arrumadas, todas as folhas perfeitas, sem doenças
ou pragas, num viço admirável, que mais pareciam cultivadas
assimbioticamente, num trato espantoso.
E assim, após três anos, depois de captar bem sua simpatia,
propusemos a ele nos mostrar o seu "viveiro", como ele chamava, sempre
dizendo que era muito longe. Mas como longe, pensávamos, se em
quatro dias, religiosamente, ele vinha com quinhentas ou seiscentas plantas
lindíssimas?
Após muita luta e esquivas e com a oferta de uma garrucha "380" de
presente (eu sempre levava garruchas, canivetes, facões e outras
bugigangas para trocar com plantas - naqueles tempos tudo era fácil,
não havia proibição de nada) ele acedeu em ir comigo,
com a condição de eu ficar com mil mudas dele a 400 réis
cada uma e levar comigo apenas um companheiro, que no caso foi o Quidinho,
genro de Sebastião de Matos Lima.
Tudo combinado, saímos cedo de Santa Angélica, cerca de
três e meia da manhã, para tomarmos o trem da Leopoldina
em Alegre às oito horas, com destino a Veado, que depois passou
a se chamar Siqueira Campos e hoje se chama Guaçuí, ainda
o Espírito Santo. Descemos em Veado, tomamos um caminhão
que transportava café em côco das fazenda para os locais
de beneficiamento, e fomos até Varre-Sai, no Estado do Rio de Janeiro,
lugarejo perto de Natividade de Carangola.
Em Varre-Sai, apanhamos outro caminhão que transportava arroz em
casca dessa fazenda onde, no dizer de Dito Getrudes, tinha ele o seu "viveiro".
Descemos do caminhão uma légua antes da fazenda, numa baixada,
com um mato baixo, em brejo, que nas suas beiradas tinha um capinzal muito
alto, não dava nem para ver a mata dentro do brejo.
O Dito disse: é aqui o viveiro! Fiquei meio abobalhado, não
querendo acreditar que ali naquele brejo rodeado de campo lindo tivesse
warneri. O Dito me disse que poderíamos começar as
tirar as plantas, porque ele tinha permissão do fazendeiro. Ainda
não quis acreditar. Eram mais ou menos duas e meia da tarde, sol
ainda a pino, sol de dezembro. Ele, decidido, entrou no brejo e eu o Quidinho
também.
Não entramos mais que 200 metros e já vi em muitos troncos
de suinã (Erythrina glauca) lindíssimas mudas de
warneri, schomburgkia e muitas outras. Dado o terreno ser
muito charcoso, as árvores não grandes e as plantas estavam
praticamente à altura de nossas mãos, coisa incrível
para quem conhece o habitat da warneri. E como as suinãs
(ou mochoco, como eles chamam) é madeira muito mole, era só
subir o primeiro galho e meter o facão e as plantas vinham todas
para baixo. Era só cortar as raízes e já estavam
limpíssimas.
Às seis e meia da tarde, maios ou menos, ainda o dia claro e com
sol, tínhamos quinhentas mudas escolhidas, uma mais lindas que
as outras. No outro dia, tiramos mais setecentos e cinqüenta plantas,
fora algumas pequenas que não contamos, colocamos em balaios de
café (que eles chamam de quiçamba) e voltamos para Santa
Angélica com três dias de viagem apenas. Essas, as únicas
warneri que colhi no estado do Rio de Janeiro. No ano seguinte,
infelizmente, esse viveiro desapareceu com a derrubada da mata e drenagem
do brejo para o plantio do arroz.
Além do fim do viveiro de warneri, nossa história
tem outro epílogo triste: o desaparecimento de seu descobridor,
o Dito Getrudes, que ocorreu no mesmo ano da derrubada da mata.
Foi assim: existia naquela fazenda uma enorme figueira, muito alta mesmo
(coisa rara nesta essência florestal), com diversas e grandes touceiras
de warneri. Eu acredito firmemente que as plantas dessa figueira
foram responsáveis pelo povoamento do brejo, não só
por ela estar muito perto (localizava-se entre o brejo e a sede da fazenda)
como por serem, as plantas de uma aparência antiquíssima,
com enormes touceiras cujas sementes, levadas pelo vento, caíram
em terreno dos mais férteis, pois sabemos serem as suinãs
excelentes hospedeiras de planta epífitas, especialmente orquídeas.
Pois o dono da fazenda sempre condicionou que se coletassem as orquídeas
de qualquer árvore, menos dessa. Seu motivo era justo e bem conhecido
dos tiradores, inclusive do Dito Getrudes, pois a figueira tinha uma enorme
touceira de flores brancas, e as albas, naquele tempo, eram de um valor
inestimável.
Em uma noite do mês de outubro de l935, quase no fim do mês,
um dos capangas da fazendo, ouvindo ruídos na figueira (as warneri
estavam em flor e a branca também) foi sorrateiramente ver o que
era. Todos os anos era um problema cruciante cumprir a ordem do fazendeiro
de que não deixassem roubar a "parasita branca". E a ordem era
para ser cumprida de qualquer maneira.
Ouviu-se um tiro (dizem que de carabina) e algo volumoso despencou de
cima da figueira. O capanga foi correndo até a sede da fazenda
e o fazendeiro perguntou o que aconteceu. O capanga respondeu: "Matei
um cascavel". E o fazendeiro disse: "Jogue na barroca do rio, agora mesmo".
Daí
em diante, tudo silenciou e nunca mais soubemos do Dito da nhá
Getrudes. Nós ainda estávamos na época da justiça
pelas próprias mãos, da lei do mais forte |