ABELHAS: amigas ou inimigas?

 
Sou Hans Jurgen Otto Frank, orquidófilo (para quem não está familiarizado, "orquidófilo" é aquele que cultiva orquídeas) e, como tal, tenho o hábito de fazer incursões em florestas, para descobrir e conhecer habitats dessas plantas tão fascinantes!
O que vou relatar a seguir é a conseqüência de uma dessas incursões, uma experiência dramática, que poderia ter sido fatal, não fosse o imponderável.
Vou ter o cuidado de não romancear, de não exagerar, de não me deixar dominar pela emoção que essas lembranças ainda me trazem, para ser absolutamente fiel aos fatos.

O objetivo, aqui, é pura e simplesmente oferecer a experiência para que outros possam utilizá-la de forma positiva. Se uma única vida for salva a partir da lição aprendida com os erros cometidos, tudo já terá valido à pena.
 


Em outubro de 1986, numa sexta feira, eu voltava de Campos dos Goytacazes, numa viagem de trabalho, acompanhado de um funcionário, chamando Manfrede.
Por volta das 14 horas, parei o carro entre as cidades de Silva Jardim e Casimiro de Abreu e o informei de que iria dar uma "entradinha" na mata, que começava a uns 80/100m do asfalto, para ver se encontrava alguma orquídea diferente das Cattleya harrysoniae, Oncidium bauerii e Rodriguesia decora, endêmicas da região, naquela época (digo "naquela época" porque hoje é tudo pasto).
Troquei de roupa ali mesmo, dentro do carro. Vesti calça e camisa de mangas compridas do tipo "jeans" e calcei botas de borracha. Como material , levei um saco e um facão, além do inseparável canivete afiado, tão comum aos que, como eu, adoram uma " coletadinha".
O calor era abrasador e tínhamos almoçado muito bem, almoço esse regado com alguns chopps, de modo que meu companheiro ficou no carro, tirando um cochilo.

Após ultrapassar a cerca de arame farpado que delimitava a propriedade, comecei minha tão esperada entrada naquela mata. O solo era muito úmido mas não chegava a ser pantanoso. A mata, densa e com muitas palmeirinhas.
Logo encontrei a primeira orquídea, um Catasetum, que foi direto para o saco (somente a frente da planta; o resto ficou lá, uns nove bulbos).
Após cerca de uma hora de lenta e minuciosa procura e com apenas algumas plantinhas, encontrava-me a uns sete metros de uma frondosa e enorme árvore, cujo tronco devia ter uns sessenta centímetros de diâmetro. Percorri, com o olhar, cada palmo de seus galhos e tronco, absorto em meus pensamentos e sonhos. Notei que a uns seis ou sete metros de altura, no centro do tronco principal, havia um oco, um buraco de uns vinte centímetros. Imediatamente, vi a grande movimentação de abelhas ao redor: era um entra e sai incessante de abelhas. Continuei a observar, imóvel, por mais alguns segundos e pensei com meus botões: "O cara que colher este mel estará feito!"
Lentamente virei as costas decidido a dar continuidade às minhas buscas, quando ouvi aquele som "turbinado" por toda a minha volta: o ataque começara!
Desde criança, sempre ouvi dizer: "as abelhas não atacam se você se deitar no chão". Dono desta verdade, joguei-me no chão, colocando o saco com as poucas plantas sobre as costas e cabeça.
Infelizmente, aquela verdade da infância era uma grande e aterradora mentira. O ataque acontecia por todos os lados, indefensável! A dor era e continua sendo indescritível.
Sabia perfeitamente o risco de vida que corria.

"Calma, Hans! Você sempre se preparou para viver, se necessário, momentos dramáticos, principalmente na época de grandes obras como Transamazônica, Tucuruí, Radial Norte, Jarí e tantos outros onde, por vários anos, esteve presente com seus equipamentos e sua inseparável maletinha de sobrevivência na selva ", eu pensava. "Água, não temos... Fogo é a solução. Isso! É só fazer uma fogueirinha e elas vão embora! Mão à obra!

Que mãos? Com o rosto entre as folhas e gravetos do solo, o saco seguro pela mão esquerda e jogado sobre meu corpo, comecei a juntar, com o braço direito, as folhas ao redor da cabeça. Minha intenção era pegar o isqueiro que se encontrava no bolso da camisa e atear fogo no material recolhido e foi nesse momento que me inteirei realmente de minha situação.
Ao levantar o corpo para pegar o isqueiro vi minha mão ou, melhor dizendo, vi a bola de abelhas em que ela havia se transformado.
De posse do isqueiro, a grande decepção: eu não conseguia mais articular os dedos, de tão inchados que estavam! Com certeza, minha outra mão, a esquerda, também se encontrava no mesmo estado.
Isso tudo se passou em muito pouco tempo (não sei precisar quanto mas creio que, no máximo, em um minuto, tempo suficiente para se fazer um edema daquelas proporções!
Tinha a sensação de estar em chamas, todo meu corpo ardia.
Costumo dizer que, agora, sei exatamente como se sente um pastel, quando é posto a fritar.

Bem... era preciso sair dali. Era preciso buscar socorro, se é que podia haver socorro contra aquilo!
De bruços, com o rosto o mais baixo que podia, fui me arrastando em direção à rodovia, que deveria estar a uns a orientar-me pelo barulho dos motores dos veículos que por lá transitavam. O ataque era infernal, elas não paravam um só instante.
Muitas vezes tive que mudar de rumo, vez por outra batia com a cabeça em uma árvore, trombava com uma moita mais densa ou me defrontava com os tais coqueirinhos espinhentos dos quais não sei o nome. Constantemente era forçado a levantar o corpo para transpor algum obstáculo no ato de rastejar e, nesses momentos, o ataque recrudescia: elas picavam o rosto, o pescoço, o couro cabeludo, o interior da boca, quando eu a abria, buscando ar. Eu já não me preocupava mais em tirar as abelhas que grudavam em minha cabeça e rosto, cada vez que era obrigado a me erguer, em busca de orientação.
Foi num destes momentos que uma grande dor e um clarão intenso tomaram conta de meu cérebro. Só muito mais tarde é que entendi o que ocorrera: eu tinha sido picado dentro do olho.
Ao me arrastar pela mata usava quase que exclusivamente a força das pernas, pois os braços eu os usava numa tentativa mal sucedida de proteger o rosto. Tal esforço sobre as pernas minava totalmente minhas energias e eu quase não tinha mais forças para me empurrar. O ar, também estava me faltando, respirava com grande dificuldade, não sei se devido ao cansaço, reação alérgica, edema de glote, stress ou tudo ao mesmo tempo. A fadiga era total.

Aqui, quero abrir um pequeno parênteses para que, em poucas palavras, possa dizer a vocês qual é meu pensamento em relação a Deus. Não estou falando de religião mas, sim, de como O vejo.
Sempre Lhe fui imensamente grato, por toda a minha vida. Jamais reclamei das intempéries que somos obrigados a enfrentar. Ao contrário, quando a dor é imensa, ajoelho-me e agradeço, pois sei que Ele é justo e não me daria um problema ou dor que eu não fosse capaz de suportar.

Bem...voltemos ao relato.

Nesse meu arrastar, em direção à rodovia, tempo e distância intermináveis, um milhão de pensamentos voavam pela minha mente.
Meus pais, irmãos, filhos, amigos, minha primeira esposa. E Sandra minha esposa na época.
A todos agradeci e pedi perdão pelos meus erros.
Mas eu ainda estava vivo e, enquanto pudesse, venderia caro minha vida.
O tempo todo mantive um monólogo com Deus, mais ou menos assim:
"Puxa, Cara! Que barra hein? Você sabe que eu sofro de claustrofobia e vai me deixar morrer asfixiado? Faça a Sua vontade, mas eu vou lutar, pois Você sempre me deu forças".
Agradeci a vida maravilhosa que até então me proporcionara. Pedi perdão pelos meus erros, por talvez não ter sido um bom filho, essas coisas.
E nesse papo íntimo, com dores de cãibras em ambas as pernas, saí da mata e me vi no capinzal que me separava do carro, a uns 80 metros. As abelhas continuavam comigo, mas com menos intensidade. Fiquei de joelhos e, com os braços erguidos, gritei com todas as forças que me restavam:
"Socorro Manfrede".
Graças a Deus ele estava acordado e me ouviu. Vendo-me, correu em minha direção sem entender o que se passava. Só entendeu quando estava a uns 2m de mim e também tomou suas picadinhas. Afastou-se uns 15m,. sem saber o que fazer. Gritei-lhe para que pegasse o extintor de incêndio, no carro. Nesta altura a falta de ar era sufocante! Não havia como respirar mas eu continuava lúcido e me dei conta de que, quando o Manfrede voltasse com o extintor, ele me cobriria com o produto e, então, eu perderia o pouco de ar que me restava.
Então pedi a Deus para o extintor falhar.
E ele falhou!

Enquanto Manfrede tentava, como um alucinado, parar os veículos para me prestarem socorro, eu arrastei-me até próximo da estrada, que ficava num plano mais alto uns 2m. Não pude subir.
Pararam dois veículos: um caminhão e uma Brasília.
Qual não foi minha surpresa, quando os dois motoristas começaram a discutir sobre meu estado e aparência, omitindo-se de me prestarem socorro!
Realmente, eu não era uma criatura muito bonita. Sujo de barro dos pés à cabeça, mãos e rosto deformados e ainda cheio de abelhas, principalmente entre os cabelos. Dei um basta naquela discussão inútil, gritando que, se eles não me levassem para um hospital imediatamente, eu morreria ali mesmo. Foi a gota que faltava para caírem na realidade. O motorista do caminhão muniu-se de uma toalha e, sacudindo-a em todas as direções, desceu o barranquinho até onde me encontrava, acompanhados dos outros dois. Todos levaram suas "lembrancinhas" (algumas picadas). Colocaram-me dentro da Brasília, no banco de trás e só então notei que o amigo estava acompanhado de sua esposa e filho. O olhar do garoto (uns 10 anos) era de pavor, que se materializou em gritos, quando foi picado por abelhas que saíram do meu corpo ou dos cabelos.

Chegando a Casimiro de Abreu, a cidade mais próxima, fui atendido no pronto-socorro local.
É impressionante como certas pessoas ficam sem ação diante de alguns quadros, mesmo profissionais experimentados como são os enfermeiros. Não sei por que cargas d'água minhas botas de borracha não saíam dos meus pés. Só sei que insistiam em tirá-las e, entre dentes, tive que pedir para que as cortassem. Só assim livrei-me dos safanões.
Não sei dizer se fui medicado e sedado, mas dormi profundamente. Acordei às 22h20min. Sei as horas porque havia um relógio na parede da enfermaria, bem de frente para mim.
Dei-me conta que haviam me lavado e vestido meu pijama.
Num canto, o Manfrede dormia todo torto sobre uma cadeira. Meu esgotamento físico era tal, que mal me mexia e era acometido por cãibras em ambas as pernas a todo momento. Dormi novamente e acordei às 3h10 min tendo ao meu lado dois enfermeiros, munidos de pinças. À medida em que retiravam os ferrões das abelhas e os colocavam em uma tijelinha, contavam em voz alta, a quantidade extraída :426, ...428,...430,...432,...

Só muito mais tarde fiquei sabendo que este procedimento (retirar os ferrões) é errado, pois o ato de puxá-lo de uma região inchada, pressiona as pequenas vesículas onde está a toxina, num ato semelhante ao de espremê-las. O resultado é que a toxina fica toda no organismo ao passo que, se os ferrões fossem deixados, parte da toxina seria absorvida mas a outra parte evaporaria.

Pela manhã recebi alta, sem nenhum medicamento ou orientação. Disseram-me apenas que, na segunda-feira, eu estaria pronto para trabalhar.

Eu mais parecia um monstro pré-histórico, um extraterrestre, sei lá.... Minha cabeça e meu corpo estavam enormes, os braços, as mãos e os dedos não se articulavam, tal o inchaço. As orelhas ficaram como dois enormes feijões. Dos olhos só se notavam dois riscos horizontais, pois tudo era uma massa só, que se juntava a uma bola com dois pequenos furos que, em condições normais chamamos de nariz. A boca, os lábios, não sei descrever, viraram para baixo e para cima. A cor dessa massa disforme que deveria ser um rosto era de um tom azulado, passando pelo roxo, até chegar ao marrom.
Foi com esta aparência, enxergando e respirando mal, andando com pernas e braços semi-abertos que, por volta das 11h. chegamos a minha casa, naquele sábado.
Sandra, minha mulher, até então nada sabia. Também não sei descrever este primeiro encontro, que foi do dramático ao patético.
Desde já informo que, não fosse a dedicação de Sandra, cuidando de tudo e de mim, provavelmente eu já teria feito a passagem.
Ela também muniu-se de uma pinça e foi tirando o restante dos ferrões, por supor (como quase todo mundo) que este era um procedimento correto.

Entre todo o mal-estar e dor que me assolavam, o pior de tudo era o olho esquerdo, onde algo me incomodava e arranhava o globo ocular cada vez que eu o movimentava causando-me, além da dor, fotofobia, náuseas e um lacrimejar incessante.
No domingo, resolvemos pedir ajuda a nosso amigo, Edward Kilpatrick. ( 1º presidente e sócio-fundador da OrquidaRio, associação da qual eu era, na época, o Tesoureiro ).
Fomos aos hospital Salgado Filho e não fui atendido: não havia oftalmologista. Dali fomos ao hospital Souza Aguiar onde o médico de plantão nada encontrou, mas fez uma bandagem, imobilizando o olho e causando-me um certo conforto.
O impressionante nisto tudo foi a mais absoluta indiferença de médicos e enfermeiros: atravessei salas e corredores (sozinho, pois não permitiam a entrada de acompanhante), pedindo informações, até chegar à sala do oftalmologista. As pessoas se afastavam à minha passagem. Ninguém, nem mesmo por curiosidade, perguntou o que eu tinha, se estava bem, se já fora atendido, medicado etc.

Segunda feira, chegaram meus sogros, vindos de Petrópolis, Jaldete e Arnaldo, para cuidarem de mim, enquanto Sandra se ausentava para trabalhar.
Observamos que, desde sexta-feira, dia do acidente, eu vinha urinando muito pouco, quase nada.

Terça-feira Sandra me levou, contra minha vontade, ao médico dela. Era um ginecologista (Dr. Garrido), mas era um profissional amigo e ela o tinha dele o melhor conceito. "Antes de ser ginecologista, ele é um clínico geral" ela dizia. Dr. Garrido ouviu a história e pediu exames de sangue e urina .
Na quarta logo cedo colhemos o que pudemos de urina e levamos ao laboratório, onde também foi coletado o sangue.
Sandra foi trabalhar mas, como eu continuava sem urinar, ela ligou para o Dr. Garrido e o informou. Ele recomendou que ela fosse para casa e me aplicasse uma injeção de lasix. Caso eu não urinasse em duas horas ela deveria avisá-lo. Assim foi feito e ele recomendou que ela pegasse o resultado dos exames e os transmitisse, por telefone mesmo, a um determinado urologista, que ele iria deixar de sobreaviso.
Ao ouvir os números de uréia e creatinina, o urologista determinou que eu fosse levado imediatamente para um hospital determinado que, segundo ele, era o hospital mais indicado, num caso como este.
Assim, à tarde eu já me encontrava hospitalizado, mas sem atendimento específico, pois os especialistas (nefrologistas) estavam todos em um congresso, em Belo Horizonte-MG.
Acontece que, sem urinar praticamente há cinco dias, minhas taxas de uréia e creatinina eram altíssimas e eu cheirava como um galinheiro. Eu mesmo podia sentir o forte cheiro que exalava. E assim se passou mais um dia sem atendimento, bebendo líquidos, sentindo dores, vomitando e fedendo.

Na quinta feira, com a forte uremia, volta e meia eu sentia que poderia perder a consciência. Achava que, se isso acontecesse e eu começasse a delirar, morreria. Pedi a Sandra que não deixasse isso acontecer. O que eu não sabia, era que ela já tinha sido orientada sobre a possibilidade de eu delirar (Dr. Garrido havia vindo me visitar no hospital e a prevenira sobre esta probabilidade).
Não sei precisar as horas mas, num certo momento, minha mente começou a vaguear pelos canteiros de obras onde, por tantos anos, coloquei meus equipamentos de terraplanagem. De repente, eu havia me transformado em um caminhão fora de estrada, sendo carregado com terra por uma pá mecânica. A carga era demasiada, eu não estava agüentando toda aquela terra e falei: "Parem! Não estou agüentando!"
Lá, bem lá no fundo do meu inconsciente, ouvi a voz da Sandra, respondendo ao meu pedido. Foi o suficiente para eu voltar imediatamente do estado de torpor e delírio em que entrara. Aos gritos e até com certa rispidez pedi ela que procurasse ajuda médica pois eu estava morrendo. Naquela madrugada de quinta para sexta, lá estava Sandra, fazendo a maior pressão sobre tudo e todos daquele hospital, exigindo um especialista. Não tinha nem mais nem menos; alguma solução teria que ser dada.

Sexta-feira, por volta das 7 da manhã, entra no quarto alguém que nunca havíamos visto: Dr. Antônio Carlos que, assim que me examinou, perguntou: "Há quanto tempo ele esta assim?"
Ao saber que fazia uma semana, saiu do quarto, sem nada dizer, retornando poucos minutos depois, com uma cadeira de rodas. Colocou-me ali e saiu empurrando a cadeira, quase a correr. Levou-me ao Centro de Diálise. Ali, disse-me: "Preciso fazer urgente uma diálise peritonial. Vai doer um pouco, mas agüenta firme."
Não sabia o que eram aqueles "palavrões" que mal entendi, mas respondi: "OK. Vai fundo".
Ele, munido de um instrumento que parecia de vidro (não sei, posso estar enganado), mais ou menos da espessura de um lápis e mais longo, recomendou: "Vai, respira fundo. Estufa a barriga...o mais que puder" .
Vupt! E enfiou-me o instrumento na barriga, no centro ou um pouco à esquerda.
Após a colocação do cateter, um novo personagem me acompanhou por muito tempo: o enfermeiro Alex, responsável pelas sessões de diálise na "sala dos horrores".

Diálise peritonial resume-se no seguinte, nas palavras de um leigo em medicina, como eu: já que meus rins haviam parado de funcionar devido a dose maciça de toxina das abelhas, meu sangue não estava sendo filtrado e as toxinas se acumulavam em meu corpo. Pois bem, para amenizar isso, introduziram o tubo (cateter) entre meus órgãos internos, até o peritônio. Por este tubo o Alex injetava litros de água que, por osmose, faziam parte do serviço e, em seguida eram retirados. O Alex fazia isso.

No sábado, com o retorno da equipe médica , Dr. William, o nefrologista-chefe assumiu meu caso.
Indiscutivelmente um dos melhores, se não, o melhor nefrologista do Rio de Janeiro.
Ao me examinar, prescreveu que eu teria que fazer várias seções de diálise peritonial, dieta alimentar e corte quase que total na ingestão de líqüidos. Para tanto teríamos que retirar o cateter de emergência substituindo-o por um fixo.
A operação para colocação desse novo cateter seria realizada por um cirurgião da Aeronáutica. Uma vez marcadas data e hora, lá estava eu, todo paramentado e preparado psicologicamente para "mais uma". Por volta das 16 h, deitado na mesa de cirurgia, vendo as luzes, acompanhando todos os preparativos ao meu redor e atento às conversas entre enfermeira, anestesista e cirurgião, que girava sobre a chuva que estava prestes a cair. Dizia o médico: "Acho que as ruas vão encher! Vai ser duro voltar prá casa.!"
Quase não acreditei quando o médico cirurgião cancelou a operação, pois ele, corria o risco de pegar um congestionamento de tráfego por causa da chuva.
E lá estava eu, de volta ao meu quarto, sem cateter, para espanto da Sandra quando lhe contei o ocorrido. Felizmente nem todos os médicos agem desta forma cínica, mercenária e desumana, pouco se importando com a dor de seu semelhante.

Uma vez instalado o cateter ( a cirurgia foi feita no dia seguinte ) começaram as seções de diálise, dia sim, dia não. Às vezes as sessões duravam 12 horas... ininterruptas!
Cada seção de diálise, ( fiz doze ) era um martírio pois, conforme a água vai entrando no ventre, aumentam a dor e o mal estar. A barriga vai crescendo, crescendo, a água comprime o estômago, coração, intestinos e tudo mais. Os pulmões parecem querer sair pela boca e mal consegue-se respirar.
E, assim, os dias e as noites foram passando. Cerca de 30 dias. Não havia nada a fazer além de dializar e esperar que a parte dos rins atingida fosse uma parte regenerável, dia o Dr. William.
Era preciso calma e muito autocontrole.

Durante as 24 horas do dia eu tinha a companhia da Sandra (que tirou férias, no trabalho) e também de meus pais. Sandra cuidava de mim, controlava as dietas, fazia-me massagens nas pernas (as cãibras continuavam), controlava e anotava milimetricamente o quanto eu havia urinado e o quanto de líquido eu bebia (as quantidades tinham que ser iguais).
A cada 24 h ela fechava o balanço hídrico e passava para a enfermeira anotar no prontuário. Este controle era de suma importância para Dr. William.
Enfim, ela foi um gigante incansável de 1,58m.. Também a ela devo minha vida.

Por quatro vezes pedi a presença do oftalmologista, que nunca conseguiu encontrar o ferrão que tanto me incomodava. O globo ocular esquerdo estava todo riscado, assim como uma teia de aranha ou um favo de mel. E o médico a dizer-me que não havia nada, que era reação do veneno.
Pobre infeliz! Meses depois o ferrão foi encontrado e retirado por outro médico. A bem da verdade, com o auxilio de equipamento bem mais sofisticado.
Mas, nunca deu-me crédito, quando eu afirmava ter algo em minha vista. Só me sentia melhor com a imobilização da pálpebra, através dos tampões e esparadrapo.
Instintivamente passei a movimentar a cabeça ao invés dos olhos, quando tinha que fitar algo que não estivesse diante de mim. Movia-me como um robô. O ferrão estava localizado na pálpebra, com a pontinha para dentro: por isso riscava-me todo o globo ocular.

Durante o tempo em que estive hospitalizado, recebi a visita de muitos amigos e isso ajudava. Eram companheiros da OrquidaRio, colegas de trabalho e diretores da Nicamaqui. firma que eu gerenciava no Rio de Janeiro, a quem sou muito grato pelo apoio moral e financeiro que deram a mim e a Sandra, até meu total restabelecimento. Diretores e colegas das firmas onde trabalhei: Montesa, Wisema , Sotrec, Monroe, Bendix e Demag .
Por ocasião da visita de dois amigos da Montesa, eu me encontrava fazendo dialíse. O choque que tiveram com minha aparência, (sentado numa cadeira de rodas, cheio de tubos, tampão no olho, cara arroxeada e ainda deformada), foi tal que o pobre do Miguel, um homenzarrão de 1,80m. teve que ser socorrido, pois teve vertigens. O Luís Otávio, na hora de se despedir, (cinco minutos depois) tentando me dar forças, gritou lá da porta: "Força, Frank! Nós temos que montar uma firma juntos, hein?"
Nesse momento, eu pensei com meus botões: "Ué, eu nunca tive esse "papo" com ele... "
Compreendi que era para dar-me forças. "Puxa! Devo estar morrendo. Obrigado, hein!" >

Conforme os dias iam se passando, mais fraco eu ia ficando.
E nada de os rins necrosados se regenerarem! Os alimentos eram quase sempre rejeitados, a sede era imensa, pois só podia tomar a quantidade de água que urinasse e eu quase não urinava! Os lábios racharam. A falta de ar aumentou e passei a fazer uso de oxigênio.
Tinha plena consciência do meu estado (só não sabia que estava prestes a me tornar um "renal crônico") e fazia de tudo para manter o corpo e a mente ativos.
Aquele era um ano eleitoral e havia um jingle do Moreira Franco cujo refrão dizia: "O nome dele é Moreira" . Eu passava o tempo todo a cantarolar a"musiquinha", para ficar "ligado". Vários dias e noites, enquanto Sandra dormia, esgotada, no sofanete, eu levantava furtivamente e arrastava-me alguns metros pelo corredor do hospital, sempre cantando o tal refrão.
Nestas "saidinhas" vi muitos que se "foram".
Que Deus os tenha!

Após 21 dias urinando quase nada, os rins paralisados, a anemia já era profunda, a ponto de não conseguir, sequer, levantar um pente. Dr. William decidiu, então que era hora de fazer uma biopsia "a céu aberto", para saber, exatamente, as condições dos meus rins.
Sandra foi buscar um certo kit no hospital do Fundão.
A cirurgia seria no dia seguinte.

Ainda não era o meu dia!
Naquela noite urinei 900ml!
Às 6 da manhã, quando o cirurgião chegou, Sandra mostrou-lhe o balanço hídrico fechado à meia-noite. Ligaram para Dr. William e tudo foi cancelado.
Meus rins tinham "aberto". Começava o processo de regeneração da parte lesada!

Cinco dias depois tive alta do hospital , 25 kg. mais magro.
A fraqueza e o desânimo eram imensos.
Neste período aconteceu algo em meu organismo, para o que não tive resposta até hoje: uma terrível intolerância ao sal de cozinha. Um simples pedaço de pão era intragável, eu tinha a sensação de estar comendo uma bola de sal.
Com três dias em casa, passei a ter febre e voltando ao hospital foi feita mais uma série de exames.
Lá veio outra "bomba": estava com pneumonia. O pneumologista do hospital ficou com o caso e assim, mal podendo andar de fraqueza, por vários dias fui até o hospital. A pneumonia não regredia, para desespero do pobre médico, embora eu já tivesse tomado os mais modernos e caros antibióticos da época.

Neste ínterim, por indicação do amigo Álvaro Pessoa, consegui uma consulta com seu renomado sogro, Dr. Piquet Carneiro, para cuidarmos da anemia. Foi diagnosticada anemia profunda e talvez fosse necessário tomar sangue.

Resolvemos consultar outro pneumologista, indicado pelo Dr. Garrido e, lá estava eu, aos cuidados de Dr. Lobianco, que internou-me num hospital público, em que era chefe da pneumologia (ele me queria 24h sob suas vistas).
Nos dias que lá fiquei fui atentamente observado e acompanhado pela sua equipe ( seis profissionais) . Os antibióticos não faziam efeito porque minha pneumonia era alérgica.

Cada vez mais debilitado resolveram fazer a transfusão de sangue.
Outra "guerra": meu sangue é A negativo, uma raridade.
Na procura de doadores, Sandra conseguiu cinco no Rio e meu irmão, quatro em Goiânia.
Antes de iniciar as complicadas transfusões de sangue, passei por um exame muito doloroso, que consistia numa punção na medula, com o fito de saber o quanto eu produzia de glóbulos vermelhos.
Surpresa! Voltara a produzi-los alucinadamente, a ponto de causar espanto na equipe, tal a quantidade de glóbulos vermelhos. Nada de transfusões!

Vinte e dois de dezembro: a equipe médica se reuniu em volta de mim e me autorizou a passar o Natal em casa, desde que eu retornasse dia 26.
No dia seguinte, 23/12/86, às 9h, papai me pegava no hospital. E eu fiquei sabendo, como poucos, o que significam as tão desgastadas frases:

Retorno ao lar! Natal em família!

Em meados de janeiro deixei o hospital, continuando minha recuperação em casa.
Em março, voltei às atividades sociais e profissionais.
 
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