Recentemente, um estudo de DNA publicado por oito autores entre os quais eu (van den Berg et al., 2000) confirmou algo que há muito se dizia na literatura, de que as espécies de Laelia ocorrentes no Brasil na realidade não pertencem ao mesmo grupo das espécies do México.
Devido ao fato de que a primeira espécie a ser descrita no gênero (a espécie-tipo Laelia speciosa) era do grupo das mexicanas, a única alternativa nomenclatural envolvia re-acomodar as espécies brasileiras em outros grupos.
Foto/Photo:Cassio van den Berg
  Em um artigo publicado no mesmo número do periódico em que publicamos o estudo de DNA, publicamos a nossa alternativa de transferir as espécies brasileiras de Laelia para Sophronitis e todas as combinações necessárias (van den Berg e Chase, 2000).
Recentement, Chiron e Castro Neto (2002) publicaram uma outra alternativa taxonômica, que envolveu distribuir estas espécies por diversos gêneros, três dos quais novos: Dungsia, Hadrolaelia, Hoffmannseggella, Microlaelia, além de Sophronitis. Nas considerações a seguir, pretendo discutir as razões que nos levaram a agrupar todas as espécies em Sophronitis e fazer comentários sobre as diferentes questões científicas envolvidas neste assunto.
Vale frisar que não existe em momento nenhum qualquer questão pessoal entre mim e Chiron e Castro Neto, com quem mantenho relações cordiais.
Quando tratamos de questões de classificações, embora o relacionamento filogenético entre um grupo de espécies (as árvores mostrando os relacionamentos de parentesco) possa ser estabelecido de forma objetiva (embora não obrigatoriamente correta), as classificações resultantes (os nomes que serão aplicados) tem um caráter subjetivo, já que temos que escolher a que grupos serão atribuídos níveis hierárquicos (seções, subgêneros, gêneros, subtribos, tribos, famílias e assim por diante). Os dois extremos óbvios desta escolha seriam de juntar ao máximo um grupo (por exemplo, juntar todas as Cattleyas, Sophronitis, Brassavola em um só gênero = Brassavola), ou dividir de tal maneira que cada espécie destes gêneros seria colocada em um gênero com uma única espécie e teríamos centenas de gêneros.
  Níveis intermediários entre estes extremos visam maximizar a informação filogenética, isto é, ao agruparmos um certo número de espécies dentro de um nível, por exemplo, gênero, estamos retendo a informação de que aquele grupo de espécies é mais relacionado entre si do que com outros grupos.
Com o avanço dos estudos de sistemática molecular em plantas, e uma conseqüente reorganização na maioria dos grupos (não é só nas Sophronitis que isto está ocorrendo), uma série grande de rearranjos começaram a ser feitos e começou-se a tentar estabelecer alguns critérios para a redelimitação de grupos.
Muitos desses foram resumidos por Backlund e Bremer (1998) e também utilizados na nova classificação de todas as plantas com flores (Angiosperm Phylogeny Group, 1998):
    1) Evitar grupos monotípicos (os que contém apenas uma espécie). Grupos com uma única espécie representam a perda total de informação, já pelo nome não é possível associar aquela espécie com nenhuma outra.
    2) Procurar alterar na medida mínima do possível a nomenclatura existente. Neste sentido, as mudanças nomenclaturais devem ser feitas apenas quando necessárias (ex. porque um determinado grupo não pode ser mantido). De forma similar, os grupos propostos devem procurar ser estáveis (com menor chance de mudança) e, na medida do possível, conservarmos o tamanho dos grupos.
 

Quando escolhemos transferir as espécies brasileiras para Sophronitis, vários fatores foram levados em consideração:
   O primeiro é que, embora os dados de DNA da região ITS mostrem claramente que as espécies de Laelia do Brasil deveriam ser segregadas, os níveis de variação (as diferenças) de DNA entre as espécies foi baixa e, portanto, os subgrupos formados dentro da árvore tiveram pouca confiabilidade estatística. Isso significa que em um próximo estudo de DNA (ver abaixo um exemplo), as relações entre os diferentes grupos de Laelia brasileiros poderia mudar substancialmente e, assim, do ponto de vista da estabilidade dos nomes (evitar mudanças posteriores) um só gênero foi a opção mais segura;
  O segundo ponto muito importante é que mantendo estas espécies em um só grupo, temos maior informação no sistema. Por exemplo, no sistema de classificação atual das orquídeas mais utilizado (Dressler, 1993), não são utilizadas categorias entre o nível de subtribo e gênero e, assim, os gêneros são listados em ordem alfabética dentro das subtribos. Se propuséssemos diversos gêneros para este grupo de espécies, eles ficariam entre os outros 50 gêneros da subtribo Laeliinae, mas a informação de que são um grande grupo de espécies relacionadas estaria perdida.
A nossa intenção a prazo mais longo era de estabelecer subgêneros que mostrassem os grupos de espécies, que é uma maneira formal de não abrir do conteúdo de informação. Entretanto, como ainda estão em andamento os trabalhos para ter uma boa separação dos subgrupos, estas propostas ainda não foram feitas, em concordância com o primeiro fator;
  O terceiro fator é de natureza histórica: tradicionalmente tem se mantido na literatura da botânica que o tamanho médio de um grupo (família, gênero, etc.) é ao redor de 40 ítens, para facilitar memorização e este foi um dos critérios utilizados para a classificação de todas as famílias de plantas no sistema de APG (1998). As espécies brasileiras de Laelia passavam um pouco deste número, mas, por outro lado, a divisão em gêneros menores produziria muitos gêneros com muito menos espécies (ao redor de 10). Adicionalmente, o gênero Laelia era bem aceito do tamanho que estava, apenas com a dúvida que existia em relação a estes dois grupos (as brasileiras e mexicanas). Os subgêneros de Laelia sempre foram uma boa solução para mostrar os subgrupos de espécies, mas sem perder a coerência do grande grupo;
  E, finalmente, tentativas de separar subgrupos em gêneros distintos já haviam sido feitas (ex. Hoffmannseggella, Jones, 1968) e não foram bem aceitas nem nos círculos botânicos (Garay, 1973) e nem pelos amadores. Dessa forma, ao optar pela transferência deste grupo de espécies para Sophronitis, foi feita uma escolha pelo sistema de maior simplicidade, estabilidade e maior conteúdo de informação.
Vamos agora avaliar algumas das considerações feitas por Chiron e Castro para justificar a separação em grupos menores.
A primeira afirmação foi de que colocando as ex-Laelias em Sophronitis estávamos “reunindo dentro da mesma entidade plantas morfologicamente muito diferentes”. Na realidade este problema não foi de forma alguma solucionado na nova classificação, pois se uma coisa chocante seria a existência de Sophronitis purpurata no nosso sistema, no novo sistema co-existem no mesmo grupo Hadrolaelia brevipedunculata (ex-Sophronitis) e Hadrolaelia purpurata (ex-Laelia) por exemplo.


  Foto/Photo:Cassio van den Berg
  No sistema de Chiron e Castro Neto (2002) espécies bem constrastantes como
Sophronitis purpurata e Sophronitis brevipedunculata continuam sendo parte do mesmo gênero.
 
Foto/Photo:Cassio van den Berg

  A segunda argumentação é de que o nosso sistema ignora o de nossos predecessores. Novamente uma afirmação infundada, já que toda a taxonomia infra-específica que existia em Laelia poderia ser passada para Sophronitis, embora preferimos deixar este passo para fazer de forma mais criteriosa com mais dados de DNA. Por outro lado, ao criar gêneros para estas categorias inferiores, Chiron e Castro (2002) deram um passo arriscado em relação aos sistemas inferiores, mudando-as de nível hierárquico. Do ponto de vista morfológico não parece haver também suporte na literatura para separação em gêneros menores. O Dr. Soto Arenas, que fez a única outra análise que existe sobre filogenia de Laelia, esta com base em dados morfológicos (Halbinger e Soto Arenas, 1997), foi um dos co-autores em nosso trabalho de DNA e seguidamente discutimos a colocação em Sophronitis antes de tomarmos esta decisão.
No trabalho de Chiron e Castro (2002) embora seja dada uma justificativa morfológica, uma leitura atenciosa do trabalho deixa claro que todos os grupos foram delimitados exclusivamente com base nas árvores de van den Berg et al. (2000), da mesma forma que a lista de espécies não difere da lista publicada em Sophronitis no artigo adjacente. Nenhum dado adicional foi apresentado para justificar as decisões. Isto nos preocupou sobremaneira pois conhecemos a fragilidade dos dados de ITS para estabelecer grupos dentro de Sophronitis (que foi expressa seguidamente no trabalho original). Isto é ainda mais surpreendente pois no início do trabalho Chiron e Castro (2002) citaram cinco considerações preliminares sobre utilização de árvores filogenéticas para classificação (ítens A-E), para, logo em seguida, desrespeitar estes critérios quase imediatamente (especialmente o ítem E sobre a robustez dos ramos).
Embora ainda não estejam concluídos novos estudos que estamos fazendo com várias outras regiões de DNA para verificar as relações dentro de Sophronitis, dados preliminares com duas regiões dos cloroplastos (Fig. 1) já demonstram que para utilizar o sistema de Chiron e Castro (2002), que acaba de ser proposto, modificações substanciais seriam necessárias.
  Foto/Photo:Cassio van den Berg
Dados de sequência de plastídeo recentes mostram que S. harpophylla
é estreitamente relacionada ao grupo das rupícolas
Com base em dados das regiões trnL-F e matK as espécies de Sophronitis no sentido antigo(antes de receber as espécies de Laelia) constituem um bom grupo (diferente da separação de S. cernua que havia na árvore de ITS) e, portanto, a colocação do grupo de S. coccinea em Hadrolaelia é inadequado.
Da mesma forma, S. harpophylla vai como irmã das rupícolas e novamente surge um impasse.
Ao mesmo tempo que as espécies de Dungsia têm algumas diferenças em relação às rupícolas,é inegável que elas compartilham várias outras
  . características morfológicas com este grupo e assim os gêneros Dungsia e Hoffmanseggella teriam que ser fundidos.
Com essas evidências, a única justificativa para termos os dois gêneros separados seria a vontade dos autores.
Por todo o exposto acima, voltamos a frisar que a utilização desses pequenos grupos como gêneros é precipitada e muito pouco estável. Ainda, por alguma razão misteriosa, em nenhum lugar do trabalho de Chiron e Castro estes autores mencionaram que havia uma classificação alternativa destas espécies em Sophronitis. Embora isto possa ter sido uma mera distração, o resultado foi pouco ético no sentido de não dar ao leitor a opção de buscar a literatura e conhecer todas as propostas alternativas, conduzindo o leitor a uma alternativa única e como se fosse absoluta novidade.
Em entrevista recente à revista “Brasil Orquídeas” o Sr. Chiron disse que não incluiu como sinônimos as Sophronitis para não “chamar a atenção” para os nomes em Sophronitis. Isto novamente soa como se, por alguma razão misteriosa, os autores estivessem omitindo qualquer alternativa à classificação apresentada.
Dentro da proposta deste trabalho, queremos ressaltar que a discussão aberta das diferentes idéias é saudável no meio científico e as justificativas científicas para tomarmos uma ou outra decisão taxonômica devem sempre ser feitas de forma explícita. Só assim podemos fundamentar nossas opiniões, e mais importante ainda, dar ao leitor a chance de buscar na literatura e escolher a alternativa que mais lhe convenha.

Fig. 1 - Uma das árvores produzidas em análise de parcimônia de dados de sequência das regiões trnL-F e matK dos cloroplastos, para Sophronitis, Cattleya e gêneros próximos.

 

Literatura Citada:

- Angiosperm Phylogeny Group. 1998. An ordinal classification for the families of flowering plants. Annals of Missouri   Botanical Garden 85: 531-553.
- Backlund, A. and K. Bremer. 1998. To be or not to be – principles of classification and monotypic plant families. Taxon   47: 391-400.
- Chiron, G. R. and V. P. Castro Neto. 2002. Révision des espèces brésiliènnes du genre Laelia Lindley. Richardiana 2:
   4-28.
- Dressler, R. L. 1993. Phylogeny and classification of the orchid family. Dioscorides Press, Portland OR, USA.
- Garay, L. A. 1973. Studies in American orchids VIII. Bradea 1: 301-308.
- Halbinger, F. and M. A. Soto Arenas. 1997. Laelias of Mexico. Orquídea (Méx.) 15: 160.
- Jones, H. G. Studies in Neotropical orchidology. Acta Botanica Acad. Sci. Hungaricae 14: 63-70.
- van den Berg, C. and M. W. Chase. 2000. Nomenclatural notes in Laeliinae - I. Lindleyana 15: 115-119.
- van den Berg, C., W. E. Higgins, R. L. Dressler, W. M. Whitten, M. A. Soto Arenas, A. Culham, M. W. Chase. 2000. A   phylogenetic analysis of Laeliinae (Orchidaceae) based on sequence data from internal transcribed spacers (ITS) of   nuclear ribosomal DNA. Lindleyana 15: 96-114.


  Cássio van den Berg
Depto. de Ciências Biológicas
Universidade Estadual de Feira de Santana
BR 116 Km 3
Feira de Santana, BA
44031-460
Brasil


  Dr. Cássio van den Berg é agrônomo pela Universidade de São Paulo, Mestre em Ecologia pela UNICAMP e doutor em Botânica pelo Royal Botanic Gardens, Kew e The University of Reading (Reino Unido).
O seu trabalho com as Laelias brasileiras foi parte das exigências para obtenção do título de Doutor. Todos os trabalhos do autor incluindo o sobre as Laelias brasileiras, podem ser obtidos em sua página web:
http://www.cassiovandenberg.hpg.com.br

  Fotos: Cássio van den Berg ©Cássio van den Berg 2003

Expressamente proibido qualquer tipo de uso, de qualquer material deste site (texto, fotos, imagens, lay-out e outros), sem a expressa autorização de seus autores. Qualquer solicitação ou informação pelo e-mail bo@sergioaraujo.com

voltar