(cont.)



  ENTREVISTA COM FERNANDO DA COSTA PINHEIRO

  Fernando da Costa Pinheiro fez seu mestrado em Botânica na Universidade Federal Fluminense.
Sua monografia versou sobre a família Orchidaceae e durante o tempo que trabalhou no Herbário Bradeneanum desenvolveu um trabalho neste área. Ele foi responsável pelo levantamento das espécies desta família no Projeto da Flórula da Vila Dois Rios.
Nesta entrevista, ele nos fala um pouco sobre as expedições e também sobre as espécies que ele encontrou.
Atualmente, ele trabalha no CNPq, em Brasília.


  ON: Fernando, você que participou desde o início deste grande projeto, poderia nos falar um
pouco mais a respeito dele? Ele engloba outras famílias botânicas ou só a família orchidaceae?

Fernando: O projeto integrado com a UERJ engloba todas as famílias que forem coletadas na região e tem como título “Estudos sobre a Vegetação de Ambiente Terrestre e Costeiro em Ilha Grande, RJ”. Ele vem sendo executado com componentes da UERJ e do Herbário Bradeanum. Já apresentamos um trabalho em forma de painel do 51.º Congresso Nacional de Botânica que ocorreu em Brasília, intitulado: “Flórula da Vila Dois Rios, Ilha Grande, Município de Angra dos Reis, Rio de Janeiro, Brasil”.
Neste trabalho apresentamos dados preliminares da vegetação da região com 219 espécies incluídas em 72 gêneros e distribuídos em 52 famílias. As famílias Orchidaceae, Rubiaceae e Melastomataceae foram as mais representativas. Isto tudo com apenas oito meses de trabalho!


ON: Como o Herbário Bradeanum – HB entrou no projeto e quem participa dele?

Fernando: O HB entrou no projeto da Ilha Grande depois de ter sido convidado para uma reunião com professores da UERJ e a primeira solicitação de ida à Ilha Grande foi feita em 8 de outubro de 1999, pelo Prof. Fontella. Inicialmente tivemos um trabalho de campo de reconhecimento da área que ocorreu nos dias 10, 11 e 12 de novembro daquele ano. Foi um momento especial, estávamos muito animados em participar de um projeto numa área belíssima, que é a Ilha Grande. Particularmente, foi uma realização de um sonho profissional.
Participaram a Maria Isabel, Valéria Cassano, Joel Campos de Paula, Vera Regina e Norma Albarello da UERJ e eu, Miriam Cristina, Luciana Cogliatti, Elisângela Medeiros do HB. Vale citar também Sérgio Gonçalves que deu enorme ajuda no trabalho de campo com sua vasta experiência na espeleologia.
Com ele, vários improvisos foram realizados como, por exemplo, a elaboração de uma escada portátil de cordas e degraus de tubos de alumínio para que pudéssemos subir nas árvores mais altas para coleta das epífitas, onde o podão não alcançava. Foi uma idéia fantástica! Inicialmente jogávamos, com a ajuda de um chumbo, um fio de nylon por sobre o tronco desejado e logo em seguida puxávamos a corda por este mesmo fio e amarrávamos em local seguro.
Tivemos vários estagiários e técnicos que ajudaram nas excursões, pois a equipe nem sempre podia participar completamente.
  ON: Que espécies de orquídea foram encontradas no local?
Fernando: Logo de início já encontramos uma população de Huntleya meleagris toda florida e logo depois o Xylobium variegatum. Lembro-me bem que não estávamos preparados para coleta e carreguei esses exemplares na mão, com todo cuidado, até chegar ao laboratório do CEADS (Centro de Estudos Ambientais e Desenvolvimento Sustentável, Vila Dois Rios, Ilha Grande, RJ) para fotografá-los.
Então planejamos os trabalhos de campo e a forma de torná-los viáveis, além disso, cada excursão teria seu relatório completo com a relação de todas as plantas coletadas, data, horário de saída, componentes, etc.

On: Qual a área abrangida pelo projeto das orquídeas?

Fernando: O projeto das orquídeas abrange todas as áreas percorridas.
Huntleya meleagris
  A Vila Dois Rios localiza-se no lado oceânico da Ilha Grande, onde estão as ruínas da antiga Colônia Penal Cândido Mendes (Presídio da Ilha Grande). Espécies encontradas no Caxadaço e na trilha para a Parnaióca também foram incluídas.
É, na verdade, uma ambição nossa tentarmos cobrir a maior parte do Parque Estadual da Ilha Grande.
O trabalho apresentado na forma de painel no 52.º CNB, em João Pessoa, teve o título “Orchidaceae da Vila Dois Rios e Arredores, Parque Estadual da Ilha Grande, Angra dos Reis, RJ, Brasil”. Nesta época, citamos a ocorrência de 47 espécies, incluídas em 28 gêneros.

ON: Como são os habitats?
Fernando: Seguindo o conceito do nosso caríssimo Prof. José Elias de Paula, da UNB, só existem três habitats: terrestre, marinho e de águas continentais. Mas não vamos entrar neste mérito e citaremos que a região é composta pela nossa exuberante Mata Atlântica, basicamente por floresta de encosta e também afloramentos rochosos. Há regiões com características típicas de restinga, mas a área percorrida não possui esta vegetação propriamente dita.

  ON: Podemos dizer que a reserva seria dividida em matas da Parnaióca, Jararaca, Caxadaço, Mãe d’água, Cavalinho?
  Fernando: Na verdade, a nomenclatura usada para identificar o local é para facilitar nossos dados de campo.
Por exemplo, trilha para a Parnaióca e trilha para Caxadaço, ambos locais denominam praias da Ilha Grande. Mãe D’água é mais delimitado devido ser a área de cachoeira para coleta d’água que sustenta a Vila Dois Rios.
A parte mais alta e a mais bem preservada é a Mata da Jararaca que faz jus ao nome.Numa antiga represa já quase fui picado por um filhote de
Cachoeira da Mãe d'Água
  Antiga represa da Vila Dois Rios jararaca. Na tentativa de subir na represa, percebi a cobra armando o bote, que iria atingir o meu braço, que, com reflexo, evitei, ao mesmo momento em que a Leonor também o puxou. Resultado: peguei a máquina e fotografei a peçonhenta.
São histórias do campo queguardamos na memória e lembramos comomomentos sempre bons do campo. Claro, não fui picado!

  ON: Qual a altitude e clima destes locais? Quais as características?
Fernando: A região apresenta um relevo muito acidentado. O Pico do Papagaio (959 m.s.m.) e a Serra do Retiro com 1.031 m.s.m são os pontos mais altos e pelo caminho que percorremos seria difícil chegar até lá num único dia de caminhada. O máximo que chegamos a alcançar foi cerca de 400 m.s.m. O clima da região é quente e úmido, sem estação seca com temperatura média anual é de 22,5º C, sendo a máxima média 25,7º C em fevereiro e a mínima média 19,6º C em julho. A pluviosidade anual é de aproximadamente 2.240 mm. Ou seja, chove muito e já chegamos a fazer uma excursão sob forte tempestade.

  ON: Vocês constataram uma ocorrência interessante, a Cirrhaea dependens. A que altitude, ela foi
encontrada?

Fernando: A Cirrhaea dependens foi uma descoberta fantástica. Foi o Sérgio que a encontrou próximo de um local que passamos a denominar de “Recanto das Pedras”, ponto final da trilha que fica na Mata da Jararaca, mais ou menos a 300 metros de altitude. Ele observou uma Cyathea (samambaiaçu) e encontrou o exemplar ainda em botão. Conseguimos transportá-lo intacto. Levei para minha casa em São Gonçalo, onde a espécie floresceu e pude tirar fotos com mais calma. O que fascina no trabalho de campo são esses momentos de descobertas ao acaso.
Cirrhaea dependens

  ON: Onde as orquídeas são mais abundantes em número de plantas, seria a Jararaca?
Fernando: Estamos até o momento com 57 espécies coletadas, sendo a grande maioria da Mata da Jararaca. Infelizmente ainda há muitas espécies que não foram coletadas, pois não estavam floridas na época.

ON: Como foram estas visitas?
Fernando: Elas duravam cerca de 3 dias, algumas 4. Sempre reservávamos um dia inteiro para ida a Mata da Jararaca por ser consideravelmente mais rica e os outros dias que sobravam distribuíamos para as outras áreas. Saíamos cedo e retornávamos já próximo ao anoitecer.
  ON: Com relação ao número de plantas de cada espécie, elas são abundantes?
Fernando: A abundância dos indivíduos de cada espécie varia muito. Às vezes as espécies são abundantes, mas não são freqüentes.
Observamos casos como a Maxillaria marginata com uma população imensa numa única rocha da Mãe D’água, mas somente aí. Xylobium variegatum e Elleanthus brasiliensis são abundantes e freqüentes, sendo observados em várias áreas da Mata da Jararaca.
Aqui não estamos levando em conta os padrões fitossociólogicos, que, aliás, é outro
Malaxis parthoni
  trabalho importante que pode ser feito.
Outras como a Cirrhaea dependens, alaxis parthoni, Promenaea stapelioides, Prosthechea fragrans e Cattleya guttata encontramos somente um indivíduo.
Promenaea
Prosthechea fragans

  Cattleya guttata ON: E a Cattleya guttata?
Fernando: Foi outro encontro fantástico. Nós só encontramos um único exemplar desta espécie, ou seja, no local que percorremos ela não é comum ou abundante. Na verdade, este indivíduo, particularmente, já estava sendo vigiado por mim, quando no final de janeiro de 2001 o encontramos em plena floração. Um dos exemplares desta espécie mais robusto que já vi. Uma inflorescência possuía 25 e a outra 20 flores e ainda um outro ramo menor. Gastei um rolo de 36 poses somente com esta planta. Não poderia perder a oportunidade. As cores estavam bem evidentes, pois o exemplar estava sobre a rocha em pleno sol.
Foi coletado somente o menor ramo florido. Espero que este indivíduo ainda esteja em seu local, que é muito freqüentado devido ao intenso trânsito de turistas. A Cattleya forbesi foi encontrada tanto na praia do Caxadaço, em rochas, à beira da arrebentação, onde é muito comum e também no interior da mata da Jararaca, mas somente um exemplar foi encontrado. Uma espécie que talvez ocorra em todos os lugares percorridos, nós não encontramos.

  ON: Como é a distribuição das espécies?
Fernando: Epidendrum é, sem dúvida, o gênero mais abundante com 12 espécies. Dichaea, Prosthechea e Maxillaria possuem 3 espécies cada. Stelis é um problema para identificar, pois suas flores são diminutas e muito semelhantes e acredito que sejam 4 espécies. É possível verificar que existem 3 espécies muito semelhantes, mas que possuem variação basicamente na cor e uma delas é bem menor, o que a diferencia bem das outras. Elas devem ser
Maxillaria rufescens
  recoletadas e as flores fixadas em álcool glicerinado para melhor análise floral ao microscópio. Quanto à distribuição não encontramos, até agora, nenhuma espécie que ocorresse em todos os locais visitados. Cada local há uma particularidade interessante, seja por estar menos preservado, seja por incidência solar ou outros aspectos.

  ON: Vi que a Miltonia spectabilis moreliana aparece em 3 deles, Jararaca, Rio Andorinha e Mãe d´Água. E as outras variedades, muito comuns em nosso estado, não foram encontradas lá?
Fernando: A Miltonia spectabilis var. moreliana é literalmente um espetáculo de planta. Foi coletada numa árvore caída na Mata da Jararaca, com muitos indivíduos. Uma sorte imensa nossa, mas não da planta.
Outras variedades até o momento não foram encontradas na região.
  Miltonia spectabilis

  ON: Achei estranho não terem constatado ocorrência de Cyrtopodium dito andersonii. Ele é tão comum na costa, em Angra.
Fernando: Há, sim, um Cyrtopodium esperando para ser coletado, só que não tivemos oportunidade de encontrá-lo florido. Com toda certeza encontraremos o Cyrtopodium polyphyllum na região, afinal são muitas as regiões de afloramentos rochosos.

ON: Se o trabalho foi executado em 9 meses e só coletado material em flor, quer dizer que existe a possibilidade de outras ocorrências? E a floração dos 3 meses restantes?

Fernando: O trabalho inicial apresentado no 51.º Congresso Nacional de Botânica é que possui somente 9 meses, mas em relação às orquídeas o número de 57 espécies é atual e engloba todas as excursões que fizemos até o momento. Acreditamos muito em nova ocorrência de outras espécies. Este número possivelmente saltará para o dobro ou mais. É ainda um sonho nosso percorremos da maneira mais efetiva possível a região.

  ON: Você disse que o máximo que chegaram a alcançar foi cerca de 400 m.s.m.. Isto quer dizer que, na área do projeto mesmo, a altitude máxima é 400msm ou você não tiveram a oportunidade de subirem mais ainda?
Fernando: Nós ainda não tivemos oportunidade de alcançar regiões mais altas, pois justamente a trilha que percorremos é muito extensa. Para se ter uma idéia, demoramos mais de 3 horas para chegar a essa região que chamamos de “Recanto das Pedras”.

ON: O Pico do Papagaio e a Serra do Retiro fazem parte do projeto? Neste caso, é possível que ainda existam ocorrência de espécies que não foram constatadas por vocês?

Fernando: Para as orquídeas sim, mas o projeto é global e não podemos dar exclusiva atenção para esta família, e é por isso que não chegamos ainda a essas regiões.
Nós temos a localização exata de várias espécies, mas estamos somente esperando a floração, pois coletar o material estéril é duvidoso. Sabemos que a identificação das orquídeas sem flores, dependendo, é praticamente impossível.
Alguns gêneros observados por nós foram: Oncidium, Sacoila, Cyrtopodium, Gongora (?), além de outros gêneros terrestres.
  Aspydogyne argentea ON: Você mesmo só trabalhou com as orquídeas ou as outras famílias também?
Fernando: Trabalhei especificamente com as orquídeas, mas fiz coleta de tudo.
Muitas espécies de outras famílias são nossas conhecidas e não tivemos dificuldade de identificação. Mas as outras famílias foram enviadas a outros especialistas, como por exemplo, Rubiaceae e Melastomataceae, que são extremamente ricas em espécies.

ON: Por que a presença e a riqueza das orquídeas é importante para indicar o estado de preservação das áreas remanescentes de Mata Atlântica?
Fernando: Observamos o seguinte ponto importante para a ocorrência de epífitas: as características do tronco. Tem que possuir um córtex com baixa dureza, boa espessura, permeabilidade e fissuras mais ou menos profundas. Isto indica um indivíduo arbóreo adulto.
  Em árvores jovens observamos pouca ou nenhuma epífita, pois a casca é mais fina e retém pouca umidade. Então é preciso a vegetação arbórea se estabelecer primeiro. Falamos como se isso fosse rápido, muito pelo contrário. Uma vegetação arbórea não estará bem estabelecida com menos de 50 anos. É um processo demorado e muito complexo. Temos vários fatores como a umidade, circulação de ar, temperatura, etc. que irão se diferenciando à medida que a vegetação se recompõe. As orquídeas ainda possuem um complicador que é a necessidade da simbiose para germinar. Geralmente observamos o estabelecimento de liquens, depois briófitas e então teremos outras epífitas. Podemos observar que geralmente as bromélias se estabelecem primeiro, pois possuem uma semente completa para o desenvolvimento do embrião. É fácil observar que as áreas com matas evidentemente secundárias como a Trilha para a Parnaióca e para o Caxadaço não possuem epífitas ou ocorrem com baixíssima freqüência. Não podemos esquecer que as áreas de difícil acesso que ficaram intocadas é que serão a fonte de sementes para outras regiões secundárias. Temos sorte no estado do Rio de Janeiro devido a sua topografia. As áreas de difícil acesso permaneceram intocadas, fornecendo sementes para que a Floresta voltasse a apresentar uma maior riqueza de espécies, não só orquídeas como também membros de outras famílias, mas infelizmente jamais será como uma vegetação original primária.

  Todas as fotos ©Fernando Pinheiro


Expressamente proibido qualquer tipo de uso, de qualquer material deste site (texto, fotos, imagens, lay-out e outros), sem a expressa autorização de seus autores. Qualquer solicitação ou informação pelo e-mail bo@sergioaraujo.com



segue