Inúmeras novas espécies têm sido descritas recentemente
na família Orchidaceae, não só no Brasil, que é
tido como um dos mais ricos em espécies de orquídeas (Dressler
1981) e possivelmente o mais rico em espécies de plantas como um todo
(Giulietti et al. 2005), como também no restante do mundo.
Este “fenômeno” que ocorre no Brasil demonstra duas situações
distintas possíveis:
1) Nosso conhecimento tem avançado consideravelmente ao longo
do tempo, permitindo a descoberta de novas espécies, a despeito dos mais
de dois séculos de estudo de vários naturalistas e biólogos
nacionais ou estrangeiros que vêm pesquisando nossa flora
ou
2) As “novas espécies”, na verdade, são “velhas
conhecidas” (ou nem tão conhecidas assim) apenas com uma roupagem
diferente.
É possível que seja um pouco de cada coisa, mas provavelmente
com a balança pendendo para descrições de “novas
espécies”, que nada mais seriam que redescrições
de espécies já conhecidas, as quais apenas apresentam variação
morfológica.
Em muitos casos, a delimitação entre espécies próximas
tem sido um tanto obscura, ficando a cargo da subjetividade da escolha do taxonomista,
acarretando uma das principais críticas relacionadas ao trabalho destes
cientistas.
Isto deveria nos conduzir a algumas reflexões interessantes:
- Qual o limite entre duas espécies?
Como, efetivamente, reconhecer a delimitação entre duas espécies
próximas?
Em primeiro lugar, devemos ter em mente os conceitos de espécie, que
variam de acordo com a área da ciência. Existem os conceitos biológico,
ecológico, filogenético, tipológico, etc. (para detalhamento
maior destes conceitos vejam este link: http://www.icb.ufmg.br/lbem/aulas/grad/evol/especies
O último (conceito tipológico) é o adotado pela taxonomia
clássica. No momento da descrição de uma nova espécie,
um typus deve ser eleito (no caso das plantas, um exemplar desidratado e conservado
na forma de uma exsicata de herbário, depositado em uma coleção
botânica, com acesso livre à comunidade científica). Este
exemplar servirá literalmente como o “modelo” para a espécie.
As plantas que são diferentes daquele typus, grosso modo, são
consideradas outra espécie.
- Mas o que é ser diferente do typus?
Quanta diferença é necessária para que uma espécie
seja diferente da outra?
E quanto dessa diferença é apenas variação entre
indivíduos de populações distintas ou até mesmo
variação entre indivíduos da mesma população?
Isto tem sido levado em consideração na descrição
de “novas espécies”?
Tomemos como exemplo a espécie humana. É notório o fato
de que não somos todos iguais. Existe, por exemplo, forte variação
geográfica entre os seres humanos. As etnias apresentam características
físicas claramente diferentes. Temos cabelos lisos, encaracolados, curtos,
longos ou nem temos cabelo; temos tons de pele e cores de olhos diferentes;
temos alturas e compleição física diferentes. Não
podemos dizer que dois indivíduos que sofram de nanismo e gigantismo
são de espécies diferentes. Somos uma única espécie.
Uma espécie altamente polimórfica, mas uma espécie única.
No entanto, muito da visão que é empregada na delimitação
entre espécies de animais não é compartilhada no momento
da descrição de novas espécies de plantas.
Os lobos laterais do labelo mais estreitos ou mais longos, a calosidade do labelo
mais robusta, as sépalas e pétalas um pouco mais estreitas ou
mais largas, a inflorescência com algumas flores a mais ou a menos, a
planta um pouco maior ou um pouco menor, a coloração... Todas
são características plásticas, ou seja, podem variar fortemente
entre indivíduos de populações diferentes ou da mesma população,
muitas vezes direcionadas pelo ambiente. Isto representa uma variação
natural a qual os seres vivos estão sujeitos.
Conhecer esta variação só é possível quando
se analisa a população como um todo ou pelo menos vários
indivíduos desta população. Não conhecer a população
pode levar a equívocos de identificação. Por isso, deve
haver cuidado ao se propor uma nova espécie, justamente devido a essa
variação.
- Será que o material analisado na descrição não
representa apenas um indivíduo variante dentro da população
ou entre as populações de determinada espécie?
Um exemplo de forte variação intrapopulacional pode ser observado
nas figuras 1 a 16, que mostram flores de indivíduos de Zygopetalum
mackayi Hook. (figuras 1 a 10) e Z. triste Barb. Rodr. (11 a 16) e, possivelmente, de um híbrido entre as duas (figura
17) no Parque Estadual de Ibitipoca. Em apenas alguns poucos quilômetros
de uma trilha na face oeste do Parque foi possível a observação
de formas e colorações diferentes, destacadamente em Z. mackayi.
A análise de apenas um destes indivíduos de forma isolada pode
levar a uma conclusão equivocada em relação a sua identidade
e possivelmente a descrição de uma nova espécie, uma vez
que não corresponderia estritamente ao typus, o que não ocorre
quando conhecemos a variação intrapopulacional existente.
Outra variação que pode ser usada como exemplo e é bem
conhecida pelos cultivadores, sobretudo de micro-orquídeas, ocorre na
espécie P. hypnicola Lindl. (atualmente aceita como sinônimo
de Pleurothallis fusca Lindl.), que apresenta um espectro de coloração
bastante amplo (figuras 18 a 26). Neste caso, é pouco provável
que se pense que as formas apresentadas nas figuras possam representar espécies
diferentes, porque é uma espécie bem conhecida e também
cultivada.
Mas, se levarmos em consideração que várias outras espécies
não tão bem conhecidas podem apresentar esta amplitude de variação,
torna-se possível o erro de julgamento, levando à redescrição
de espécies já existentes.
Os dois casos citados acima são baseados apenas em aspectos superficiais,
como meio de exemplificar o quanto pode haver de variação intra
ou interpopulacional.
O exemplo seguinte é proveniente de um estudo mais aprofundado, a revisão
taxonômica de Pseudolaelia que tem a finalidade de estabelecer
melhor a delimitação entre as espécies deste gênero,
metade das quais foram descritas nos últimos seis anos. Este estudo tem
empregado ferramentas como análise morfométrica de flores e análise
de polimorfismo do DNA, além da taxonomia clássica.
A figura 27 mostra flores dissecadas de uma população de Pseudolaelia geraensis Pabst ocorrente no município de Nova
Era (MG). É possível notar um forte polimorfismo nas peças
florais destas plantas, sobretudo no labelo. O desconhecimento da variação
morfológica intrapopulacional poderia resultar na descrição
de novas espécies, baseado na morfologia floral que muitas vezes define
as espécies deste grupo, uma vez que a morfologia vegetativa é
um tanto quanto homogênea.
Alguns trabalhos publicados com o estudo morfométrico de espécies
polimórficas têm mostrado que a variação morfológica
pode ser muito grande, e deve ser levada em consideração no reconhecimento
da identidade de algumas espécies (p. ex. Cardim et al. 2001, Carlini-Garcia
et al. 2002, Pinheiro & Barros 2008, 2009).
Ferramentas como análises de DNA, morfométrica, enzimática,
anatômica, dentre outras, têm sido utilizadas contribuindo em grande
medida com a taxonomia, quando usada em conjunto com a morfologia. A utilização
destas ferramentas tem o intuito de auxiliar a delimitação de
espécies, gêneros e agrupamentos supragenéricos, reduzindo
a possibilidade de erros e ampliando nosso conhecimento da árvore da
vida.
No entanto, o inchaço taxonômico acarretado pela descrição
equivocada de novos táxons, causa grande confusão, dificultando
cada vez mais os estudos que visam estes fins, inviabilizando até mesmo
a confecção de uma “simples listagem” de espécies
que nosso país abriga.
Figuras 1 a 10
Figuras 11 a 16
Figura 17
Figuras 18 a 26
Figura 27
Agradecimentos
A Maria Rita Cabral e Luiz Filipe Varella, pela leitura, comentários
e fotos cedidas.
Referências citadas
Cardim, D. C.; Carlini-Garcia, L. A.; Mondin, M.; Martins, M.; Veasey, E. A.
& Ando, A. 2001. Variabilidade intra-específica em cinco populações
de Oncidium varicosum Lindl. (Orchidaceae – Oncidiinae)
em Minas Gerais. Revista Brasileira de Botânica 24(4): 553-560. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-84042001000500010&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
Carlini-Garcia, L. A.; van den Berg, C. & Martins, P. S. 2002. A morphometric
analysis of floral characters in Miltonia spectabilis and Miltonia
spectabilis var. moreliana (Maxillarieae: Oncidiinae). Lindleyana
17(3): 122-129.
Dressler, R. L. 1981. The orchids, natural history and classification. Harvard
University Press, Harvard.
Giulietti, A. M., Harley, R. M., Queiroz, L. P., Wanderley, M. G. L., van den
Berg, C. 2005. Biodiversidade e conservação das plantas no Brasil.
Megadiversidade 1(1): 52–61
Pinheiro, F. & Barros, F. 2008. Morphometric analysis of Epidendrum
secundum (Orchidaceae) in southeastern Brazil. Nordic Journal of Botany
25: 129-136. Disponível em: http://www3.interscience.wiley.com/journal/120818040/abstract?CRETRY=1&SRE
TRY=0
Pinheiro, F. & Barros, F. 2009. Morphometric analysis of the Brasiliorchis
picta complex (Orchidaceae). Revista Brasileira de Botânica 32(1):
11-21. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?pid=S0100-84042009000100003&script=sci_arttext
Luiz Menini Neto
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora
Juiz de Fora – MG
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