Introdução por Orchid News

Os professores José Luiz de Andrade Franco, historiador, doutor em história social e das idéais e José Augusto Drummond, cientista social, mestre em "environmental science" e ph.D em Recursos Naturais e Desenvolvimento, dedicaram dois trabalhos a Hoehne.
O primeiro trabalho é denominado "Frederico Carlos Hoehne: a atualidade de um pioneiro no campo da proteção á natureza do Brasil", de  2005, publicado no Ambiente & Sociedade. Vol.8 nº1, Campinas - SP e o segundo  é o livro "Proteção à Natureza e Identidade Nacional do Brasil, anos 1920-1940", pela Editora Fiocruz - 2009.
Neste último, eles abordam o relevante papel desempenhado por um grupo de naturalistas na formulação da política relativa à questão da conservação do patrimônio natural brasileiro no período compreendido entre as décadas de 20 e 40, discorrendo sobre as contribuições de Alberto José Sampaio, Armando Magalhães Correia e Cândido de Mello Leitão.
Todo o capítulo quatro é dedicado a  Hoehne (Frederico Carlos Hoehne e a Conservação da Natureza no Estado de São Paulo).

Quando se ouve falar sobre Hoehne, imediatamente se pensa em seus estudos sobre a família Orchidaceae, mas ele foi muito além comopode se verificar nos dois trabalhos mencionados.  
Preocupados com esquecimento deste estudioso, os autores enfatizam:  "Falecido há menos de 50 anos, sobre o pensamento e a ação de Hoehne, já caiu um manto preocupante que, se não é de esquecimento, é de desconhecimento. Em termos de memória, o desconhecimento pode ser a véspera do esquecimento. Seu pensamento, em grande parte esquecido, merece ser recuperado e examinado com mais atenção".
Desde há muito, havia  a intenção de se prestar uma homenagem a Hoehne, mas ao deparamos com estes bem elaborados e completos textos, preferimos solicitar autorização dos autores para adaptarmos e publicar em Orchid News dando a nossa pequena contribuição para diminuir o desconhecimento e, por conseguinte, o impedir o esquecimento de Frederico Carlos Hoehne.
Orchid News.


"Frederido Carlos Hoehne, pioneiro na proteçao da natureza do Brasil"

Texto adaptado por Delfina de Araujo

Frederico Carlos Hoehne foi um pioneiro no campo da proteção à natureza entre os cientistas brasileiros do século XX.
Na posição de cientista prolífico e influente, de escritor e de gestor de instituições científicas, de participante de organizações da comunidade científica, Hoehne contribuiu para a emergência de uma consciência ambientalista no Brasil. Transmitiu o seu saber sobre a natureza brasileira e a sua preocupação com a sua preservação para várias gerações de cientistas brasileiros, décadas antes de a questão ambiental emergir de forma institucionalizada na consciência dos cidadãos contemporâneos. A partir da defesa pública de suas posições, ele assumiu importância destacada entre os brasileiros que se preocupavam com a proteção da natureza nos anos de 1930-1940. Tudo isto numa fase de escassos investimentos na ciência.
Foi um dos primeiros brasileiros a empreender estudos sistemáticos, abrangentes e de longa duração sobre a nossa flora nativa e sobre assuntos associados, como biogeografia e ecologia. Passou décadas estudando continuamente a flora brasileira, alternando as suas viagens de campo com extensos períodos de trabalho de laboratório, herbário e pesquisa, em instituições brasileiras. Viajando por quase todo o país, denunciava os procedimentos que contribuíam para a devastação das matas e o mau aproveitamento do solo.

“Matta Virgem entre Jussural e Angra dos Reis, Estado do Rio de Janeiro, que
visitamos em l926 aqui se pode ver como a estradas de ferro, desde que são construídas, contribuem para destruir as matas que atravessam. Um acampamento em que demoramos 8 dias estudando a flora e as condições em que medram as Orchidaceas de nossa terra.” (Album de Orchidaceas Brasileiras).

Em poucas palavras, ele aliou uma extensa experiência de campo com a formação de coleções de plantas que serviam de base para os estudos de outros cientistas e sobre as quais produziu publicações numerosas e influentes, dando uma enorme contribuição científica para o melhor conhecimento da flora brasileira. Deixou um legado que ajudou e ainda ajuda na formação de novas gerações de cientistas naturais brasileiros, muitos dos quais, de diversas formas, engajaram-se, ou engajam-se, nos esforços de conhecer e preservar a natureza do país. A sua abordagem combinava a ciência com argumentos estéticos e de identidade nacional. Para ele era fundamental que os humanos agissem de modo harmônico com a natureza que os circunda, procurando conhecê-la e admirá-la.

Nascido e criado no interior de Minas Gerais e com formação de autodidata, durante a sua longa carreira, atingiu o status de cientista de renome nacional e internacional. Além de ser um pesquisador de primeira linha, ele conseguiu articular e comunicar uma percepção muito sensível em relação à natureza e à sua diversidade, usando argumentos tanto estéticos quanto pragmáticos no sentido de sua conservação. Ele argumentava que a preservação de faixas da floresta nativa propiciava habitats para pássaros, insetos e outros animais que protegiam as culturas agrícolas dos predadores e parasitas. Essas perspectivas, com certeza, são hoje em dia sustentadas e acatadas em qualquer congresso sobre a biodiversidade e a preservação do ambiente natural, mesmo por cientistas que nunca puderam ler Hoehne.
Já na década de 20 do século passado, ele ponderava e alertava sobre as ações humanas frente à natureza:
"... ao homem assiste o direito de dispor das árvores, como de tudo que a natureza lhe oferece, como melhor entender, mas, com isto, não podemos outorgar direitos a particulares em prejuízo certo da coletividade" (HOEHNE, apud Dean, 1996: 274).
"... aquilo que a natureza criou, uma vez destruído, jamais poderá ser confeccionado artificialmente e... nas florestas e campos naturais ainda possuímos milhares e milhares de plantas e animais que não conhecemos mas que um dia talvez se tornem muito importantes e úteis para nós" (HOEHNE, apud DEAN, 1996: 274).
Seu nacionalismo era uma aposta na possibilidade de que o Brasil corrigiria os seus rumos no tocante ao trato com a sua natureza e que, por meio de um projeto próprio, reconciliasse as atividades humanas com a natureza. Para ele, os países de economia mais avançada perdiam o seu papel tutelar nessa dimensão, servindo-nos, quando muito, como um sinal de alerta, pois que, "tendo privado seu solo das florestas primitivas e nativas, hoje tentam restabelecer sua biota e condições ótimas por meio de florestas naturais, sem jamais o conseguir" (HOEHNE, apud DEAN, 1996: 274).
Ele julgava necessário, portanto, resguardar o patrimônio natural da nação.
O patriotismo e a valorização da natureza, não só do ponto de vista econômico, mas também de uma perspectiva que envolvia o interesse científico e a sensibilidade estética, eram vistos como fundamentos necessários da identidade nacional e garantia de perpetuação do patrimônio natural herdado. Ele via a devastação da natureza no Brasil como resultante da ignorância, ou da má fé e egoísmo dos que só tinham olhos para o lucro imediato. Era necessário, portanto, disponibilizar as informações sobre a conservação da natureza e dos seus recursos para um público, o mais amplo possível, e garantir a elaboração de leis que submetessem o interesse privado ao bem público.

Cirrhaea longiracemosa Hoehne

Cirrhaea longiracemosa Hoehne é uma espécie que tem uma distribuição ampla ocorrendo deste o estado de Santa Catarina até a Bahia, passando por Paraná, Espírito Santo e Rio de Janeiro. “Conhecida como 'cacho de vespinhas' ou 'cacho de mosquitinhos' devido ao aspecto de suas flores e seus agrupamentos na raque da inflorescência. Com o movimento da brisa, constata-se um leve movimento de seu segmento, que se assemelha ao das vespas ou mosquitinhos pousados” (Hoehne, Iconografia das Orchidaceaes do Brasil – 220)

Sua preocupação com a preservação de espécies e com a diversidade biológica fez com que, desde cedo, defendesse a necessidade da criação de reservas genéticas da flora e fauna nativas. Na esfera federal, suas idéias contribuíram para a criação dos primeiros parques nacionais brasileiros. No âmbito estadual, teve participação direta na criação do Jardim Botânico de São Paulo. Nos anos 1930, foi decretada uma legislação relacionada com a proteção da natureza e foram criadas algumas áreas de reserva natural. Ele reconhecia a importância destas medidas, embora se queixasse da falta de observação das leis que as amparavam. Em sua opinião, era fundamental, no que dizia respeito à preservação da natureza, subordinar os interesses individuais aos da coletividade, que deviam ser pensados visando as gerações futuras.

Hoehneella gehrtiana (Hoehne) Ruschi
Hoehneella Ruschi, um gênero em sua homenagem

Hoehne não foi um preservacionista "strictu sensu". Defendia o uso, desde que previdente, dos recursos naturais, bem como a fruição estética e a pesquisa científica, que deveriam ser garantidos pelo artifício humano em consórcio com a natureza, era a favor da produção, numa modalidade que hoje chamaríamos de sustentável. Cidades arborizadas e floridas, entrecortadas de parques e jardins, estradas entremeadas de reservas florestais, constavam de seus projetos.
Apesar de toda esta contribuição, ele faz parte de uma legião ainda recente de vozes quase esquecidas que se manifestaram contra o trato irracional com a natureza brasileira. Falecido há menos de 50 anos, sobre o pensamento e a ação de Hoehne já caiu um manto preocupante que, se não é de esquecimento, é de desconhecimento. Em termos de memória, o desconhecimento pode ser a véspera do esquecimento. Seu pensamento, em grande parte esquecido, merece ser recuperado e examinado com mais atenção.

Sua biografia
Frederico Carlos Hoehne nasceu em Juiz de Fora (MG), em 1/2/1882 e faleceu em 16/3/1959. Foi criado em localidade rural próxima à sua cidade natal, em área de domínio da Mata Atlântica, segundo ele, nasceu ali  "o alicerce para o [meu] interesse para a botânica".
Concluído o ensino médio e não tendo acesso a um curso superior do seu interesse, com 17 anos, buscou o caminho do autodidatismo para prosseguir com as suas observações sobre plantas. Adquiriu livros e ampliou a sua coleção de plantas, esforçando-se para identificá-las e classificá-las, já com a ambição de descobrir novas espécies.
Em 1907, com 25 anos, lançou a sua carreira de pesquisador e cientista ao ser nomeado, apesar de não ter formação científica, para o cargo de Jardineiro-Chefe do Museu Nacional do Rio de Janeiro, a maior instituição científica do país. Logo depois, foi convidado a integrar uma expedição de naturalistas do MN que acompanharia Cândido Mariano da Silva Rondon numa viagem ao Mato Grosso.
Em 1917, se transferiu para São Paulo e se fixou profissionalmente desenvolvendo uma atuação sistemática e de longa duração, no que diz respeito ao estudo e à proteção da natureza. Naquele estado, esteve à frente de diversas instituições ligadas à Botânica e sua carreira esteve intimamente vinculada ao surgimento do Instituto de Botânica do Estado de São Paulo, desde que se transferiu em 1928, para o então a Instituto Biológico de Defesa Agrícola e Animal. Finalmente, em 1942, após diversas mudanças passou a ser o atual Instituto de Botânica, onde trabalhou at é 1952 e se aposentou, compulsoriarmente ao atingir a idade de 70 anos.

Suas obras:
Para Hoehne não bastava a produção pura e simples do conhecimento, era preciso divulgá-lo. Escreveu mais de 600 artigos científicos e de divulgação discorrendo sobre assuntos diversos como reservas florestais e estações biológicas, ornamentação de ruas, parques urbanos e estradas de rodagem, com a defesa da plantação de espécies nativas, reflorestamento, proteção de florestas, com destaque para a necessidade de uma legislação de proteção à natureza, combate aos hábitos da derrubada e queimada, a defesa das florestas em geral, como fatores determinantes do clima, da agricultura e da estética, campanhas de preservação. Sua contribuição se estendeu a outras produções, como palestras, conferências, livretos para crianças e textos diversos de circulação restrita.

Habenaria ernestii-ulei Hoehne
Espécie descrita a partir de planta encontrada na Serra de Itatiaia, Rio de Janeiro, em altitude de 2.000m

No atual Instituto de Botânica, se dedicou ao mapeamento e à pesquisa da flora brasileira e publicou vários volumes desse trabalho, que intitulou Flora Brasílica. Esta obra é constituída 12 fascículos sendo que 4 deles (Fascículos 1, 5, 8, e 10) abordam a família Orchidaceae, tornando-se uma das obras mais importantes e mais completas sobre este grupo de plantas, editado no Brasil. Sobre esta família, além desta coleção e de diversos artigos e relatórios de viagem, publicou Iconografia das Orchidaceas do Brasil e Álbum de Orchidaceas Brasileiras. Sua obra, muito vasta, obteve amplo reconhecimento, inclusive, internacional. Ele foi homenageado por inúmeras instituições, destacando-se o convite para participar como membro honorário da American Orchid Society, distinção conferida a poucos cientistas no mundo inteiro, e o recebimento do título de doutor honoris causa pela Universidade de Göttingen na Alemanha, em 1929.

Viagens e orquídeas
Em meados de 1908, partiu para aquela que seria a primeira de suas numerosas viagens de pesquisa a muitos pontos do Brasil. Em fins de 1909, voltou de Mato Grosso trazendo 2.000 plantas colhidas em vários locais do então remoto e gigantesco estado, as quais foram incorporadas ao herbário do Museu Nacional. Enviou alguns exemplares florísticos à Alemanha, para identificação. Desenhos seus (de plantas) foram impressos também na Alemanha e depois anexados ao relatório oficial da expedição de Rondon.
Em 1910, estava de volta a Mato Grosso, na companhia dos botânicos Hermano e Geraldo Kuhlmann, em nova expedição de estudos da flora.

Entre as diversas espécies de Catasetum descritas por Hoehne, três delas ocorrem no estado do Mato Grosso, como Catasetum cirrheaoides Hoehne


Em 1912, foi, outra vez, botânico de uma expedição de Rondon (Mato Grosso e Amazonas) e em 1913 desempenhou a mesma função na chamada Expedição Científica Roosevelt-Rondon. Em pouco mais de cinco anos, portanto, fez quatro longas viagens de exploração científica.
Entre 1908 e 1948, participou de 15 expedições científicas pelo Brasil e alguns países limítrofes. As viagens o levaram, entre outros lugares, a Mato Grosso, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e ao litoral sul brasileiro. Nessas expedições, foram coletadas, pelo menos, 10.000 espécimes vegetais, correspondendo a, no mínimo, 4.000 espécies distintas, das quais cerca de 200 eram novas para a ciência.
As viagens realizadas por Hoehne pelo Brasil, bem como o seu conhecimento e as suas preocupações com a flora e fauna nativas, foram sintetizadas em Iconografia das Orchidáceas do Brasil (HOEHNE, 1949b), no capítulo "Excursão mental pelo País". Trata-se, basicamente, de elucidar quais são, onde e como vivem as orquidáceas brasileiras. No entanto, à medida que acompanhamos o autor na viagem proposta, são discutidas outras questões mais gerais, relacionadas à fitogeografia ou à proteção e uso racional da natureza. Em princípio, ficava acertado que:
“Nenhum outro país do mundo tem maior variedade de motivos do que o nosso. As nossas florestas e campos naturais ostentam trepadeiras e ervas com flores mais bonitas e mais belas do que as do Acanto da Grécia e abrigam orquidáceas com flores mais lindas e artísticas do que todas as rosas da Bulgária e Itália. Porque deixarmos que os artistas em terras estranhas nos tirem o privilégio de introduzi-las na arte decorativa, de baixos relevos, barras, gregas e chapeados, como em papéis pintados e enfeites de estuque? É urgente e muito conveniente que volvamos as nossas vistas para todas essas maravilhas da natureza indígena para utilizá-las nas artes, nos jardins, nos parques e nos salões. Assim fazendo, praticaremos obra patriótica, porque concorreremos para que a gente da nossa terra aprenda a apreciá-la, a amá-la, não só pelo que ela produz do lado intelectual, mas também pelo que nasce e brota espontaneamente do seu ubérrimo solo” (HOEHNE, 1930: 33-34).

Estilização das flores de Bifrenaria harrisoniae Rchb. F. para formar vitrais ou tapetes –
desenho de M. B. Vecchi.
Desenho apresentado na Iconografia das Orchidaceas do Brasil como sugestão para a
introdução das orquídeas brasileiras na arte decorativa

Resumo extraído do trabalho intitulado “Frederico Carlos Hoehne: a atualidade de um pioneiro no campo da proteção á natureza do Brasil”, publicado em 2005, Ambiente & Sociedade. Vol.8 nº1, Campinas e também do capítulo IV – “Frederico Carlos Hoehne e a Conservação da Natureza em São Paulo”, do livro “Proteção à Natureza e Identidade Nacional no Brasil, anos l920-1940”, Editora Fio Cruz 2009, ambos de autoria dos professores José Luiz de Andrade Franco (*) e José Augusto Drummond (**)

(*) Doutor em História pela Universidade de Brasília. Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade de Brasília e Pesquisador Colaborador do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília.
(**) Ph.D. em Recursos Naturais e Desenvolvimento pela Universidade de Wisconsin. Professor Associado do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília.


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