Desvendando a história natural das Vanilla Neotropicais

Emerson R. Pansarin

 

Botânico e Professor da Universidade de São Paulo.
Desenvolve estudos com taxonomia, evolução e reprodução de plantas, principalmente orquídeas.
Ao longo de sua carreira tem se dedicado aos estudos envolvendo Vanilla Neotropicais.

Departamento de Biologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Av. Bandeirantes 3900, 14040-901, Ribeirão Preto, SP, Brasil.

Para correspondência: epansarin@ffclrp.usp.br

Vanilla inclui cerca de 130 espécies que estão distribuídas pelas regiões tropicais das Américas, da Ásia e da África.
No Brasil, esse importante gênero de orquídeas está representado por aproximadamente 35 espécies.
Embora cultivadas por séculos devido à importância de seus frutos para a indústria e gastronomia, aspectos relacionados à história natural das baunilhas ainda têm sido pouco explorados. No entanto, estudos recentes baseados em extensivo trabalho de campo e de laboratório vem mudando esse cenário.
Durante muito tempo a transferência de pólen em Vanilla tem sido atribuída a um sistema de engano alimentar.
No sistema de engodo de alimento, as flores comumente possuem características comuns àquelas encontradas em espécies que oferecem algum tipo de recompensa floral. No entanto, o recurso não é produzido e os polinizadores são atraídos por engano às flores. Embora a polinização por engano realmente possa ocorrer em Vanilla (Pansarin & Pansarin 2014), pelo menos no que se refere às espécies Neotropicais, essa condição é incomum e parece ter surgido a partir de ancestrais nectaríferos (Pansarin & Ferreira 2022).
As Vanilla Neotropicais formam dois grupos (clados) bem sustentados.
Um deles inclui as Vanilla de folhas finas e reticuladas, como V. edwalli, V. dietschiana, V. arcuata e V. angustipetala.


Vanilla edwalli

O outro clado Neotropical inclui as Vanilla de folhas carnosas.
Nesse último, Vanilla palmarum emerge como irmão de um grande grupo conhecido como “clado aromático”, que inclui as espécies de Vanilla cultivadas para fins comerciais, como V. planifolia, V. pompona e V. odorata (Pansarin & Ferreira 2022).









Vanilla palmarum

Vanilla planifolia

Vanilla pompona

Entre as Vanilla com folhas reticuladas os dados são muito escassos.
Existem relatos de abelhas do gênero Xylocopa como visitantes florais de V. mexicana e V. edwallii. No entanto, um estudo detalhado envolvendo populações de V. edwallii do interior do Estado de São Paulo revelou que as flores dessa espécie são polinizadas por abelhas do gênero Epicharis (Pansarin et al. 2014).
Nesse estudo não foi detectada a produção de recursos florais aos polinizadores. No entanto, pesquisas recentes têm mostrado que muitas espécies conhecidas como sendo polinizadas por engano podem revelar o oferecimento de algum tipo de recurso. Por isso é muito importante que estudos sobre biologia da polinização sejam baseados na utilização de diferentes métodos de análises, e que os dados sejam coletados em mais de uma população (Pansarin et al. 2022).
Para o clado Neotropical que inclui as espécies de folhas carnosas, os dados sobre polinizadores, embora esparsos, estão disponíveis para muitas espécies.
Dentro desse grande grupo, Vanilla palmarum, que ocorre como epífita sobre palmeiras, é polinizada por beija-flores que visitam as flores em busca de néctar.

Um estudo realizado envolvendo populações do Amazonas e do Maranhão revelou que as flores produzem néctar, que fica acumulado em um estreito tubo (câmara nectarífera) formado pela união da base do labelo com a coluna da flor
(Pansarin & Ferre
ira 2022).

Detalhe de uma flor de Vanilla palmarum mostrando o acúmulo de néctar na câmara nectarífera.


Detalhe do labelo de Vanilla palmarum mostrando a depressão longitudinal responsável pelo direcionamento do bico do beija flor até a câmara nectarífera.
Vanilla palmarum é muito adaptada para a polinização por aves. As flores exibem coloração amarela e não emitem qualquer tipo de fragrância. Além disso, a porção central do labelo possui um canal longitudinal que atua com um guia, direcionando o bico dos beija-flores até a câmara nectarífera (Pansarin & Ferreira 2022).

O restante das espécies Neotropicais forma um grande grupo cujas flores são odoríferas e polinizadas por machos de abelhas solitárias (machos de euglossine).
A relação entre os machos de abelhas euglossine e as flores de Vanilla tem sido observada desde os primeiros estudos realizados por Robert Dressler, na década de 1960 (veja Pansarin 2016, 2019).


Essas abelhas são atraídas às flores das baunilhas devido à volatilização de compostos aromáticos que são produzidos por células secretoras presentes nas sépalas e no interior do labelo (osmóforos; Pansarin 2021).
Os machos de euglossine coletam a substância lipofílica que se volatiliza (perfume) com estruturas semelhantes a escovas presentes nas pernas dianteiras. Posteriormente as abelhas transferem as substâncias coletadas para as tíbias posteriores, em estruturas chamadas de corbículas, onde ficam armazenadas.
As fragrâncias coletadas pelos machos são usadas durante o processo de corte e também para defesa territorial.

Embora o perfume floral seja um recurso coletável para os machos de euglossine, a processo de polinização ocorre quando as abelhas entram no tubo floral formado pelo labelo e pela coluna em busca de néctar (Pansarin 2016, 2019).


Machos de Eulaema nigrita coletando fragrâncias florais sobre as sépalas de uma flor de Vanilla pompona.
No interior do labelo também é possível observar a presença de osmóforos. No entanto, o tubo floral estreito parece inviabilizar o comportamento de coleta de fragrância pelas abelhas. De fato, as abelhas que são observadas entrando pelo labelo parecem estar interessadas em néctar, não na coleta de fragrâncias. Os osmóforos presentes no labelo atuam como guias de recurso, como é comum em plantas polinizadas por agentes bióticos.
Em suma, embora as Vanilla Neotropicais tenham sido consideradas por longo tempo como polinizadas por engano de alimento, o sistema de polinização da maioria delas é baseado no oferecimento de dois tipos de recursos florais, néctar e perfume (Pansarin 2016, 2019, 2021; Pansarin & Ferreira 2022).
A dispersão de sementes de Vanilla tem sido tema de debate desde o início dos estudos envolvendo orquídeas.
As sementes de Vanilla assim como de outros poucos gêneros basais dentro dessa família possuem características comuns àquelas dispersas por animais (endozoocoria; e.g. Pansarin 2022; Pansarin & Suetsugu 2022).

Como é conhecido, as sementes da maioria das espécies de orquídeas são diminutas e dispersas pelo vento (anemocoria).
Em um estudo experimental envolvendo seis espécies de Vanilla Neotropicais foi comprovado que aves podem atuar como dispersores de sementes no gênero (Pansarin 2022).
Nesse estudo também foi verificada a necessidade de escarificação ácida para a ocorrência da quebra de dormência e sincronismo dos processos biológicos, ou seja, para que a germinação aconteça no início da estação chuvosa, as sementes precisam passar pelo trato digestivo dos animais (Pansarin 2022).

Fruto de Vanilla bahiana em corte transversal mostrando as sementes
Em outro estudo envolvendo dispersores de Vanilla, desta vez em condições naturais, foi observado que além de aves diurnas, mamíferos noturnos (ratos e marsupiais) também podem atuar na dispersão de sementes, pelo menos em espécies com frutos deiscentes (que abrem e expõem as sementes; Pansarin & Suetsugu 2022).A parede do fruto apresenta grandes quantidades de cristais de oxalato de cálcio. Esses cristais podem causar a morte de mamíferos por duas vias: por asfixia, ou quando convertido em ácido oxálico (que é tóxico para mamíferos) durante o processo de digestão (Pansarin 2022; Pansarin & Suetsugu 2022).
Os frutos de algumas espécies de Vanilla quando maduros exibem contraste de cor bem marcante amarelo/preto que parece ser eficiente na atração de pássaros durante o dia.

Fruto maduro de Vanilla bahiana evidenciando a região da deiscência com contraste de cor amarelo/preto.

Gracilinanus agilis (Cuíca) se alimentando do endocarpo de um fruto de Vanilla bahiana.
No entanto, os frutos de Vanilla comumente são muito aromáticos e atraem mamíferos durante a noite.
Os frutos de Vanilla são ricos em compostos lipofílicos (gorduras), açúcares e proteínas (Pansarin & Suetsugu 2022).
Estudos em andamento demostram que não apenas as espécies que pertencem ao “clado aromático” (i.e. clado euglossinófilo; Pansarin & Ferreira 2022) produzem frutos fragrantes.
Algumas espécies de Vanilla com folhas reticuladas também podem produzir frutos muito fragrantes cujas sementes são dispersas por animais.

Referências

Pansarin ER (2016) Recent advances on evolution of pollination systems and reproductive biology of Vanilloideae (Orchidaceae). Lankesteriana16: 255-267.
Pansarin ER (2019) The use of multiple data sources to elucidate the identity of Brazilian vanillas (Vanilloideae, Orchidaceae). In: Proceedings, 22nd World Orchid Conference. Asociación Ecuatoriana de Orquideologia, Guayaquil, Ecuador (pp. 162-167).
Pansarin ER (2021) Vanilla flowers: much more than food-deception. Bot J Linn Soc 198: 57–73.
Pansarin ER (2022) Unravelling the enigma of seed dispersal in Vanilla. Plant Biol 23: 974-980.
Pansarin ER, Ferreira AWC (2022) Evolutionary disruption in the pollination system of Vanilla (Orchidaceae) Plant Biol 24: 157-167.
Pansarin ER, Suetsugu K (2022) Mammal-mediated seed dispersal in Vanilla: its rewards and clues to the evolution of fleshy fruits in orchids ESA Ecology (no prelo)
Pansarin ER, Pansarin LM (2014) Floral biology of two Vanilloideae (Orchidaceae) primarily adapted to pollination by euglossine bees. Plant Biol16:1104–1113.
Pansarin ER, Aguiar JMRBV, Pansarin LM (2014) Floral biology and histochemical analysis of Vanilla edwallii Hoehne (Orchidaceae: Vanilloideae): an orchid pollinated by Epicharis (Apidae: Centridini). Plant Sp Biol 29:242–252.
Pansarin ER, Pedro SR, Davies KL, Stpiczyńska M (2022), Evidence of floral rewards in Brasiliorchis supports the convergent evolution of food-hairs in Maxillariinae. Am J Bot (no prelo)