Photo: Sergio Araujo  Photo: Sergio Araujo
Artur Norberto Heger  José Carlos Cavalin




Como surgiu a idéia deste projeto?

A idéia básica do Projeto Caapora nasceu quando ocorreu a 1a Exposição Internacional de Orquídeas, em São Paulo, em 1989. Naquela exposição, nós tivemos o primeiro contato com orquidófilos de fora do Brasil e notamos o grande interesse que eles tinham nas plantas brasileiras. Não somente nas grandes vedetes, como as labiatas, purpuratas, intermedias, etc, mas também nas plantas que nós chamamos de botânicas, as plantas de pequeno porte, como os Oncidiums, por exemplo.
Oncidium unicornum.Photo:Sergio AraujoNós notamos a grande dificuldade que estas pessoas tiveram em levar estas plantas para fora do País, pelo simples motivo de que aquelas plantas não eram até aquela época produzidas, quase todo material era coletado na natureza. Havia uma grande lacuna. Nós tínhamos um grupo grande de colecionadores destas plantas aqui no Brasil e todo o material que queríamos tinha que ser extraído da natureza.
Neste momento, começamos a perceber que a coisa era um pouco mais séria. Se todas estas plantas forem sendo extraídas e não forem sendo reproduzidas, no momento em que o habitat desaparecer, passa-se a ter o risco destas plantas desaparecerem de vez. Oncidium unicolor.Photo:Sergio Araujo Na época o número de interessados não era tão grande assim. Isto despertou em nós a idéia de trabalhar, de alguma forma, em cima disto, de fazer alguma coisa. Então reunimos um grupo de orquidófilos e começamos a pensar em incrementar justamente a produção deste tipo de plantas, destas que não são produzidas normalmente.

Em que consiste exatamente o Projeto Caapora?

Nossas grandes vedetes como Cattleya labiata, intermedia, Laelia purpurata, entre outras, são cultivadas por tanta gente que não vão desaparecer nunca, pois têm seus melhores espécimens selecionados e reproduzidos em grande escala por produtores, tanto do Brasil quanto no exterior. A qualquer momento que você tenha necessidade delas, por algum motivo, você tem milhares e milhares de exemplares espalhados pelo mundo.
O Projeto Caapora destina-se à reprodução e preservação de espécies brasileiras de orquídeas menos atraentes para estes produtores e portanto mais ameaçadas de extinção. Como ficam estas plantas cujas flores são menores, que não atraem tanta a atenção como as Pleurothalidineas? Epidendrum allemanoides.Photo:Sergio AraujoOu a Sobralia e a Stanhopea que, apesar de lançarem flores grandes e vistosas, são de curta duração? Ou ainda aquelas que têm flores muito pequenas em relação ao tamanho, apesar de numerosas, como o Oncidium, o Epidendrum e outros gêneros? Nós trabalhamos para produzir este tipo de planta. A idéia central nossa sempre foi esta.

Como é que vocês escolheram, chegaram a este nome, Caapora?

Quando iniciamos este trabalho, logo começamos a pensar qual seria o nome do projeto que estávamos desenvolvendo. Chegamos à conclusão que, em se tratando de um projeto de preservação de plantas brasileiras, nada mais correto do que tentar ligá-lo à nossa mitologia indígena, que é o que temos de mais genuinamente brasileiro. Fomos buscar nas lendas tupi-guarani, a lenda do Caapora que era o protetor das matas. Caa, em tupi-gurarani significa mata, erva, planta, qualquer coisa ligada à vegetação e Pora é o protetor, o defensor. Então, Caapora seria o defensor das matas.
Se bem que este é um termo que, ao longo do tempo, sofreu uma alteração. Como ele era um defensor das matas, na época que foi moda ou que seria correto extrair coisas da natureza, devastar tudo, surgiu o Caipora, uma entidade que impedia isto. Um mau elemento que não permitia que se retirassem as plantas da mata. A lenda foi desvirtuada e ele passou de protetor a agressor, porque o correto seria você tirar. Por isto, em muitos lugares no Brasil, quando você fala em Caipora ou Caapora, é interpretado como a coisa ruim, uma pessoa mal intencionada e tudo o mais, justamente pelo trabalho que ele fazia de preservação. Nós buscamos o lado original da lenda indígena, que é o conceito da preservação.

Laelia lilliputana.Photo:Sergio Araujo Como foi o início deste projeto?

Nosso grupo começou com 5 pessoas e ao longo do tempo foi sendo desfalcado e hoje em dia somos só duas pessoas trabalhando seriamente neste projeto: José Carlos Cavalin e eu mesmo. Inicialmente tentamos reproduzir apenas as espécies brasileiras mais ameaçadas mas o Projeto Caapora enfrentou uma série de problemas. Quando se trabalha com a reprodução das orquídeas mais conhecidas, citadas acima, não existe mais muito segredo quanto ao meio de cultivo, mecanismo de germinação e desenvolvimento pois tudo isto já foi amplamente estudado e divulgado. Mas quando se trata de cultivar plantas como Zygopetalineas, Pleurothalidineas, Oncidineas, faltam informações sobre as fórmulas mais adequadas, o melhor ponto de maturação das sementes, sua sensibilidade aos processos de esterilização etc... Também por reflexo da falta de informações disponíveis, perde-se muitas plantas quando se passa dos frascos para a estufa e, além disto, há o pouco interesse por parte da maioria dos orquidófilos por este tipo de planta.
Todos estes problemas fazem com que a produção destas plantas tenha um custo bastante elevado, tornando inviável qualquer projeto voltado exclusivamente para a produção destas espécies.

Qual é a filosofia do trabalho de vocês?

Catasetum atratum.Photo:Sergio Araujo Nós temos o seguinte modo de pensar: hoje em dia é utopia você falar em preservar planta exclusivamente na natureza. Nós vemos tanta área sendo devastada que, às vezes, visita-se uma área para verificar quais plantas existem naquele habitat, fazer uma coleta e, ao voltar depois de 2, 3 anos, simplesmente não se encontra o local. Aquilo que era uma mata exuberante virou um pasto, uma plantação, virou uma fazenda, ficou embaixo de uma represa, virou um loteamento.
Nós verificamos que muitas plantas das quais nós tomamos conhecimento através de referência de colecionadores antigos, não existem mais. É o caso de plantas que existiam dentro da cidade de São Paulo, como a célebre Cattleya velutina paulista que existia em todo o vale do rio Tramanduateí, na várzea do rio Pinheiros. Não existe mais várzea no rio Pinheiro, não existe mais várzea no rio Tramanduateí. É uma planta que simplesmente não existe mais. Tem-se alguma notícia de que foi encontrada uma planta na região do vale do rio Paraíba ou algum outro lugar mas se realmente ainda existe alguma planta, não se sabe.
Outro exemplo, há uns 15 anos, começaram a aparecer em exposições a Scuticaria itirapinensis, coletada na Serra de Itirapina, região de São Carlos, mas é uma planta que atualmente não se tem notícias de nenhum exemplar. Ninguém mais tem esta planta em coleção. Quer dizer, esta série de plantas que haviam sido retiradas da mata, foram comercializadas e sendo uma planta de difícil cultivo, ninguém se preocupou em reproduzi-la e ela se perdeu.
O habitat sofreu uma série de incêndios sucessivos e eu conheço várias pessoas que nos últimos anos bateram a serra de Itirapinha tentando localizar especificamente esta Scuticaria itirapinensis, mas ninguém me deu um retorno de que ela havia sido encontrada.
Assim, como estes dois casos que cito, existem muitas outras plantas. Não adianta tentar preservar a planta no habitat, se o habitat não é preservado.
Mesmo em áreas onde a vegetação nativa é preservada, como podemos garantir a sobrevivência da espécie? É comum se encontrar áreas razoavelmente preservadas, onde as orquídeas sobrevivem em boa quantidade mas, por mais que se procure, não se encontra um único fruto com sementes. Sendo as orquídeas plantas muito especializadas, a fecundação das flores de uma determinada espécie é feita, em muitos casos, por um único agente polinizador. A inexistência de frutos pode estar ligada ao desaparecimento, na região, deste inseto polinizador por causa do uso de inseticida em lavouras próximas ou no caso de ser uma ave, por ter migrado definitivamente para outras áreas onde exista maior quantidade de alimentos.
Sem se reproduzir, qualquer espécie está próxima do fim. O correto seria termos a planta nos jardins botânicos, nos hortos florestais, mas infelizmente a estrutura destes órgãos não é a ideal. Temos contato com vários deles mas infelizmente não são os melhores lugares para se preservar uma planta. Estas coleções são cuidadas por uma ou duas pessoas e quando estas pessoas, por força de tempo de trabalho, se aposentarem, haverá uma lacuna de alguns anos sem que haja um novo funcionário tomando conta.

Então, de que maneira este projeto de preservação pode ter êxito? Como ele é estruturado?

É preciso que estas plantas sejam colocadas em mãos do maior número possível de pessoas para que possam ser preservadas. Como é que nós fazemos isto? Nós produzimos a planta e colocamos nas mãos de colecionadores.
O colecionador que adquire uma orquídea é, em princípio, uma pessoa que gosta daquela planta.
Ele vai saber cultivar?
Não tenho certeza mas alguns vão e se conseguirmos colocar 500 exemplares, muitos vão morrer mas alguns vão se salvar. Aí se começa a ter um problema. Não adianta só pensar em produzir, soltar na natureza, distribuir as plantas para os colecionadores, a produção da planta é uma coisa demorada e cara. Tem que se fazer uma coisa que seja auto-sustentável.
Como que se pode fazer isto? Produzindo e comercializando.

Quer dizer que vocês não tem subsídio de espécie nenhuma, o projeto depende exclusivamente de vocês e do resultado obtido com ele? Enfim, é um projeto pessoal?

Exatamente, nós não temos subsídios de espécie nenhuma. Nós estamos trabalhando nisto desde 1990, quando começamos a estruturar o projeto e até hoje estamos investindo dinheiro direto. Por sermos justamente poucas pessoas, como já disse, nós investimos à medida que podemos.
Liparis rhodridila.Photo:Sergio Araujo Lógico que se tivéssemos uma estrutura pesada, com um investimento forte, já estaríamos muito mais avançados do que estamos hoje. Nós estamos trabalhando lentamente. Quando se trabalha com coisas vivas, pode-se sempre, a qualquer momento, ter um problema. Nós sabemos de orquidários no mundo que desapareceram por problemas de fungicidas, incêndios, etc... por isto nós preferimos trabalhar com nossos próprios investimentos e se, por acaso, nós tivermos algum problema, nós perdemos o nosso tempo e o nosso trabalho.
A idéia central de produção destas plantas acabou esbarrando num problema: todo o sistema de laboratório que existe no Brasil está voltado para a produção das plantas comerciais ou seja, produz-se uma cápsula de Cattleya e manda-se para um laboratório, há 99% de chance desta planta germinar e se desenvolver muito bem. Produz-se uma cápsula de Laelia purpurata tranqüilamente.

Promenaea xanthina.Photo:Sergio Araujo Quando se começa a produzir Pleurothallis, Oncidium, Bifrenaria, Promenaea, Zygopetalum , esbarra-se em plantas cuja necessidade de cultivo é diferente. Se a necessidade de cultivo da planta adulta é diferente, a necessidade de cultivo dela no laboratório, para germinação, também é diferente. Requer muita pesquisa, investimento de tempo, desperdício de material, portanto produzir um Pleurothallis é mais caro do que produzir uma Cattleya. A Cattleya tem um mercado consumidor mas o Pleurothallis não.
Como é que nós iríamos resolver isto? Buscando uma saída para este impasse, passou-se a produzir, além das espécies brasileiras mais ameaçadas, algumas das nossas famosas vedetes e de plantas estrangeiras também ameaçadas de extinção mas que despertam um maior interesse em nosso mercado e outras que não sofrem esta ameaça, mas que tem grande apelo comercial.
Com esta produção paralela, estamos tentando financiar nossa produção de plantas para a preservação. Produz-se uma Cattleya a custo baixo, vende pelo preço normal de mercado e subsidia-se a produção de um Pleurothallis, de uma Promenaea, que custam mais caro e que têm que ser vendidos abaixo do custo, senão o mercado não aceita.
Se um Pleurothallis for oferecido por R$ 15,00 em nosso mercado, vão nos chamar de loucos, não há condição. O problema é que nós mandamos fazer, no laboratório, 500 plantas de Pleurothallis e conseguimos ter 30 a 40 plantas adultas. Quer dizer, nosso custo de produção do Pleurothallis é violentíssimo, todo o trabalho é violento. Não se tem referência literária nenhuma. Não se sabe exatamente como se comportar com a planta.
Encyclia bracteata.Photo:Sergio Araujo Nós tivemos problemas com Coryanthes, nós estávamos com um lote de mais de 1.000 em frascos. Colocamos na estufa, uma maravilha, as plantas cresceram durante 30 dias, dobraram de tamanho, um desenvolvimento espetacular, muito bom. A temperatura na estufa caiu, no inverno, a 15o C, de 1.000 plantas sobraram 30 ou 40. Na semana seguinte, caiu a 14o C, não sobrou nenhuma planta viva. Nós sabemos que Coryanthes é uma planta que não tem resistência ao frio mas 15oC, a princípio, não seria suficiente para dizimar um lote, mas dizimou.
Nós não temos laboratório próprio, o que encarece nosso trabalho porque todo o serviço tem que ser feito por terceiros. Quando a planta sai do laboratório, ela tem um custo. É plantada, outro custo. De onde vai se tirar recursos para cobrir este prejuízo?
Nós precisamos ter uma parte da produção mais comercial. Alguém pode dizer que não estamos produzindo aquilo que propusemos pois nós estamos também comercializando Cattleya trianae, loddigesii, labiata... Hoje mesmo alguém me questionou sobre a produção de plantas estrangeiras.

Então esta foi a maneira que vocês encontraram para tornar o projeto viável?

Exatamente, esta é a forma que temos.
Nós vendemos 10 Comparetia speciosa que a flor é grande e vistosa e não vendemos uma Comparetia coccinea, só para dar um exemplo dentro do mesmo gênero.
No caso desta última, ainda não conseguimos a reprodução dela, é muito complexa.

Encyclia lingarigolioide.Photo:Sergio Araujo De que forma vocês trabalham? Semeio, meristema, corte?

Nós trabalhamos exclusivamente com sementes. No momento em que estamos trabalhando com uma espécie natural, esbarra-se num outro ponto: toda planta que ocorre na natureza, ocorre espontaneamente, quer dizer, não há nenhum trabalho natural de uma melhoria genética da planta. Nós já percebemos que as espécies brasileiras respondem muito bem. Se pegarmos, por exemplo, purpuratas, labiatas, que há 10, 15 anos atrás valiam fortunas, hoje em dia são plantas jogadas fora, vendidas por R$ 10,00 em floricultura. Por que? Porque foi feito um trabalho de seleção, de melhoria genética, se escolheram os melhores clones para cruzamento, chegando-se a plantas de grande apelo comercial, a ponto de derrubar aquelas plantas consagradas antigamente.

Eventualmente se começarmos a fazer o mesmo tipo de trabalho com Oncidium , com plantas menor porte, vamos conseguir plantas que vão se destacar mais e no momento em que se conseguir Encyclia cujas flores, ao invés de 2 cm, tenham 3, 4 cm, o comércio se interessa.
Enciclya albo-xanthina.Photo:Sergio Araujo Fazer um meristema, na minha opinião, é parar no tempo pois quando se pega uma planta e faz-se um meristema, para-se exatamente naquilo, considerando que aquela forma obtida é ideal e não se quer fazer mais nada em cima dela.
Eu acho perfeitamente válido o meristema quando se tem um híbrido. Quando se produz um híbrido, pode-se se repetir o cruzamento 50 vezes mas se um exemplar daquela hibridação deu uma coisa espetacular, não se vai reproduzi-lo de maneira idêntica de novo. Não tem como. Aí faz-se o meristema para preservá-lo. Em outros casos, também é válida a meristemagem, quando, por exemplo, se têm algumas plantas albinas. A planta albina é uma planta com uma deficiência genética. Uma planta com deficiência tem muito mais dificuldade em se reproduzir e tem muito mais interesse comercial. Se eu tenho em mãos uma planta desta, é interessante reproduzi-la por meristema pois o comércio dela vai me subsidiar outras produções mesmo porque, muitas vezes, têm-se um único exemplar.
Quanto à auto-fecundação, falar em melhoria genética a partir dela, não existe. É preciso procurar escolher 2 clones de boa qualidade para cruzá-los entre si e buscar uma melhoria. Melhoria genética a partir da bagagem genética de uma única planta, no meu entender, é impossível. Não haveria uma melhoria simplesmente reproduzindo a planta.
Muita coisa nós fazemos através da auto-fecundação. Se há apenas uma planta em mão, vamos fazer pois a primeira idéia é preservar aquela planta. O melhoramento é um passo a ser dado, mas se tivermos um único exemplar da planta em mãos e o único recurso for a auto-fecundação, ela vem em primeiro lugar. No próximo ano, se nós tivermos duas, nós fazemos um cruzamento para tentarmos uma melhoria, mas o primeiro passo é tentar reproduzir qualquer planta que tenhamos em mãos e que esteja ameaçada.
Têm muitas plantas no país cuja área de ocorrência é tão grande, com tantos habitats diferentes que o trabalho de preservação pode até ser deixado mais para frente.